Meu pai,
quando jovem, saiu pelo mundo na companhia de um irmão mais velho, fruto do
primeiro casamento de meu avô Martinsinho. Ambos abandonaram a lida nas roças no
Mata-burrinho, deixando-a por conta dos outros quase 20 irmãos e meios-irmãos.
A pé, numa caminhada próxima a 250 km, saíram de Patos de Minas e foram até
Conquista, na região de Uberaba, onde conseguiram emprego nas Usinas Junqueira.
Ali, conheceu as primeiras letras numa escola noturna, aprendeu a dirigir um Ford
29 e, em pouco tempo, ganhou respeito dos patrões. Sempre fora um homem sério,
responsável e trabalhador. Isto foi na década de 20.
Um dos
capatazes da fazenda, com o passar do tempo, tornou-se um admirador de meu pai,
pois via nele um futuro diferente. Pouquíssimos eram os trabalhadores que se interessavam
pelos estudos e em conhecer os equipamentos e veículos utilizados na produção
da usina. Convenceu meu pai, conhecido como Juca Martins, a buscar outros rumos
e então o encaminhou a um amigo em Bauru, onde, a conselhos, assentou praça na
Força Pública do Estado de São Paulo, como motorista de ambulância. Cargo
reservado somente a quem sabia ler, escrever e que tivesse a Carta de
Motorista.
De motorista,
em pouco tempo foi guindado às fileiras da Força Pública. Seu espírito nato de
liderança, aliada a um nível cultural um pouco maior que o da maioria, o
catapultou a promoções em ritmo crescente. Vieram as Revoluções de 29, 30 e 32.
Ao final desta, já era Major aos 23 anos, quando foi preso, juntamente com os 6
homens que lhe restaram de sua companhia, pela Coluna Prestes às margens do Rio
Paranapanema, que divide os Estados de São Paulo e Paraná.
Preso, foi
enviado para o Rio de Janeiro, sendo recolhido à Ilha das Cobras. Dada a falta
de motoristas à época, ele foi transferido para o Palácio do Presidente do
Estado do Rio, onde prestava seus serviços a diversas autoridades, levando-as e
buscando-as no aeroporto, estações de trens e ônibus.
De certa feita
transportara o Presidente de Minas Gerais, Dr. Olegário Maciel, que também era
natural de Patos de Minas. Durante o trajeto, entabularam uma conversa e logo
veio à tona a coincidência de suas naturalidades. Meu pai, em poucas palavras
relatou sua odisseia, desde que saíra da região de Mata-burrinho até às margens
do Paranapanema. Admirado e comovido com a história, Olegário Maciel
ofereceu-lhe pugnar pela sua libertação e, ao mesmo tempo, oferecera uma
oportunidade de emprego em Patos de Minas, caso ele quisesse retornar ao rincão
natal. Meu pai não titubeou, aceitou a ajuda e o cargo de Inspetor de Escola
naquela região. Propostas ajustadas e com a interferência do Presidente
Olegário, meu pai foi libertado, papelada regularizada e ainda conseguiu voltar
para Belo Horizonte na comitiva de Olegário Maciel.
Voltando a
Patos de Minas, já de posse da nomeação assinada pelo Presidente Olegário, meu
pai se apresentou na Delegacia de Ensino e foi destacado para inspetoria
escolar na mesma região e adjacências onde nascera e crescera. Foi acolhido na
fazenda do Sr. Manoel Coelho, fazendeiro tradicional na região do Mata-burro.
Naquela época
era comum a região receber sua denominação em decorrência dos nomes dos
córregos da localidade. Assim a região do Mata-burro era aquela servida pelo córrego
Mata-burro, a região do Mata-burrinho, afluente do Mata-burro, era aquela
servida pelo córrego Mata-burrinho. Ainda tínhamos a Canjerana, o Baú, o
Sapecado, o Lajeado e assim por diante.
Professor
naquela época era muito respeitado. Já o Inspetor, era quase uma autoridade.
Logo, meu pai gozava de algumas regalias na casa do Manoel Coelho. Eram apenas
quatro os filhos de Manoel Coelho. Dois homens, o Manoel e o João. Duas filhas,
a Maria e a Erlinda. Destas, a Erlinda era mais nova, mais bonita e mais
assediada pelos rapazes da região. Provavelmente o velho Manoel Coelho
reservava para ela um bom casamento, pois um casamento de conveniências fazia
parte do contexto social daquela época. Quanto à Maria, não tão bonita quanto à
Erlinda, ela tinha um temperamento explosivo, muito nervosa e não era muito
chegada a rodeios. Ou era oito ou oitenta. Sem meios termos.
Em determinado
dia, Manoel Coelho foi à Lagoa Formosa, distrito de Patos de Minas, distante
uns 20 km de sua fazenda, e convidou meu pai para lhe fazer companhia na
viagem. Meu pai não se fez de rogado. Selou um cavalo e saiu com o velho
Manoel.
Cumpridas as
obrigações, retornaram. Bem ao final da tarde, já descendo pelas encostas da
fazenda do Antônio Camargo, em direção ao córrego do Lajeado, Manoel Coelho
parou seu cavalo, apeou e começou a enrolar um pito de fumo. Mau pai lhe
acompanhou neste afazer. Do outro lado do Lajeado, já era a fazenda do velho Manoel.
Após a subida da encosta, num aclive bem suave, era um chapadão, todo ainda em
mata. De onde estavam, era possível avistar a lateral leste de toda fazenda, com
cerca de 2.500 metros, iniciando-se as divisas, à esquerda, pelo córrego do
Mata-burro e, à direita, até a localidade denominada de Volta do Toco. Do
córrego do Lajeado até o final do chapadão, no sentido oeste, era uma diagonal
de cerca de 800 m. Portanto, eles estavam de frente de parte da fazenda do
velho Manoel, medindo cerca de 200 hectares de terra, algo em torno de 80
alqueires mineiros.
Após algumas
tragadas, o velho Manoel, voltou-se para meu pai e num tom firme, disse:
- Juca, se você acertar quantos alqueires das
minhas terras estamos vendo daqui, eu lhe dou a Maria em casamento.
Meu pai foi
pego de surpresa e talvez não fosse bem essa a intenção dele em relação às
filhas do velho Manoel. Matreiramente e buscando esquivar-se da armadilha, não
vacilou:
- Sô Manoel, eu cálculo que estamos de frente
a uns 40 alqueires de terra.
- Na mosca, Juca, pode marcar a data do
casamento.
Patos
de Minas, abril de 2015