domingo, 12 de abril de 2015

Eu, o Ponto


Sou um quase nada, apenas um substantivo masculino. Nem biforme e nem uniforme. Acho-me uma exceção. Meu oposto, a ponta, não é minha variação genérica. Eu sou eu e ela é ela. Mas numa genitura assexuada, ela pode me gerar.

Numa mitose vertical, sou prenúncio na frase e divisão na matemática. Na horizontal, fui simplesmente banido e extirpado da ünica letra que me aceitava para um descanso. Oxalá não resolvam, um dia, decapitar o “i” e o “j”! No “g” sou o ponto mais cobiçado. Se a pausa é média, amasio-me com a vírgula. Se há questionamento, armo-me de uma bengala. Na emoção sustento uma barra vertical. Triplico-me nas reticências.

Esfera de diâmetro zero. Sou ponto de partida e sou ponto final. Depois de mim, mais nada. Sou ponto de ônibus e ponto de parada. Ponto de táxi e ponto de encontro. Sou ponto cardeal, sou ponto no firmamento. Ponto de luz, ponto escuro e ponto cego. Posso ser ponto de equilíbrio e ponto fixo, mas também ponto pacífico, ponto estratégico, ponto de referência, ponto de apoio, ponto de vista e até mesmo, ponto falso. Sou ponto de fusão, ponto de ebulição, ponto de bolha e ponto crítico. Ainda sou ponto eletrônico e ponto elétrico. Se ponto turístico, sou diversão. Se ponto 50, mato. Ponto de bala.

Se ponto fraco, mas também ponto de honra e ponto forte. Ponto importante e ponto de discussão. Estava a ponto de me esquecer do ponto em branco. Ponto neutro e ponto morto. Há cartão de ponto e há ponto facultativo. Há os que, quase sempre, chegam em ponto. Se alguns entregam os pontos, outros não dão ponto sem nó. Se tiver quem põe ponto nos iis, há quem dorme no ponto. Se alguns fazem ponto na vida, outros degustam a vida ao ponto. Estes vão de ponto a ponto.

Posso na costura ser o ponto da linha. Sou ponto no tricô e ponto no crochê. Ponto baixo, ponto alto, ponto cheio, ponto cruzado. Ponto aberto e ponto fechado. Sou ponto globalizado, russo, francês, português. Sou ponto que sobe e desce na tabela e ponto nas competições. Ponto na bolsa de valores, ponto comercial e ponto de venda. Ponto sorteado e ponto na nota do aluno.

Modéstia às favas! Sou o ponto e pronto!


Martins

14/08/10             

sábado, 11 de abril de 2015

Os Pensamentos


Coincidência?  Sei lá!  Mas, inexplicavelmente, aconteceu. A divagação tinha direção e sentido certos. Não era coisa impensada. Pelo contrário, já amadurecia há algum tempo. Os pensamentos são como uma fecundação. Aparecem como se do nada viessem. Minúsculos no início. Crescem, quase sempre de forma imperceptível, e criam corpo como que repentinamente. Esparsos e distanciados, aos poucos, se aglomeram. Se bons, crisalidam-se. Encontram lugar nas asas da imaginação e voam. Transubstanciam-se. Motivam outros. Tornam uma fonte inesgotável de filhos. Desses vários que tive, um teve história.

       Não me lembro quando. Num dia, talvez sem querer, esbarrou na porta. Abri. Deixei que entrasse. De jeito manso. Muito educado. Ocupou um lugar qualquer e se fez despercebido. Não incomodou. Não falava, fez-se, então, excelente companhia. Em verdade, nem notava sua presença. Mas estava sempre lá. Sorriso matreiro, muito familiar. Isto mesmo, familiar.  Talvez um dia eu já o possuira e se perdera nas brumas do subconsciente.

        Era diferente de todos que conhecera. Era um pensamento sorridente. Sim, sempre que eu me virava, lá estava ele sorrindo. Enigmático. Nunca consegui traduzir o pensamento daquele pensamento. Nunca falou comigo. Apenas aquele sorriso maroto.

         Isto começou me incomodar. Passei a prestar-lhe mais atenção. Foi o bastante, caí na armadilha. Tornei-me seu escravo. Não mais me libertava. Onde eu estivesse, volta e meia, lá estava ele. Calado, mas sempre sorridente. Foram dias, semanas, meses. Pensamento obstinado!

         Certo dia ele falou. Apenas me cumprimentou. Foi como a primeira palavra de um filho. Não cabia em mim de satisfação. Naquele justo momento estava pensando nele. Estávamos sintonizados. Será? Não sei, achei que sim. Calma, José, isto é perigoso. Pensamento que fala, deixa de ser pensamento, já é uma idéia. Tenho medo de idéias e de quem as tem. Evito ambos, não gosto de riscos. Admito apenas os calculados.

       Apago este pensamento? Não! Ele não merece. É um pensamento de causar inveja. Vender, talvez? Também não seria uma boa opção. Afinal, quem iria querer pensamentos de outrem! E se eu gratuitamente o oferecesse? Também não! Era tirar o direito de alguém pensar. E agora, José?
  

Vou a porta escancarar
Mostrar-lhe a vastidão do mundo
As flores e rosas que vão lhe abrigar
Os corações que dele necessitam.

Vou a porta escancarar
Mostrar-lhe quantos dele carecem
Mentes que buscam crisálidas
Almas que perseguem o sorriso.

Vou a porta escancarar
Mostra-lhe que meu coração é pequeno
Que seu sorriso me machuca
Que seu silêncio é afiado.

Vou a porta escancarar
Deixá-lo sair mansamente
Assim como entrou
Deixando-me só com meus pensamentos.



Martins

30.10.05

Sexo Animal


A prática de sexo com animais no meio rural não era comum em minha época de infância, mas também não era raro. Sempre se ouvia algumas histórias envolvendo galinhas, bezerras e cabritas. Se o caso viesse ao conhecimento dos pais a caroba torcia. As costas ficavam marcadas, por um bom período, pelas lambadas de varas de marmelo ou de corda sedenho. A correção era exemplar.

          Pitoresco, por exemplo, foi o caso do Jésus. Menino da cidade e que gostava de visitar seu avô, que sempre residira em sua propriedade rural. Era avesso a tudo que era urbano. Numa ocasião, dois filhos do empregado da fazenda conseguiram convencer o Jésus que transar com uma cabrita era a melhor coisa do mundo. Jésus, coitado, com 6 ou 7 anos apenas, não conhecia ainda nada sobre sexo. Mas sabia o que era. Depois do convencimento, os meninos pegaram uma cabritinha, prenderam-na bem rente a uma cerca e mostraram suas partes íntimas ao Jésus e explicaram como deveria ser executada a tarefa. Ele achou aquilo meio estranho, mas concordou. Os meninos se afastaram, para não atrapalhar a intimidade do casal e pra não gerar constrangimento. Enquanto, isso, o Jésus arriava as calças curtas. Escondidos atrás de uma moita de bananeiras, os amigos ficaram esperando o desfecho. O tempo foi passando, a cabrita berrando e nada do tal desfecho. Depois de um longo tempo, já impacientes, os amigos exigiram que o Jésus acabasse a operação de forma mais rápida.

            - Jésus, vai acabar com isso não?
          - Não tem jeito não, o rabo dela parece um limpador de para-brisa...não fica quieto!

        Outra situação jocosa ocorrera com o Augusto, que também tinha uns 7 anos. Dias antes, o Augusto, numa brincadeira no terreiro, caiu e ralou o rosto nuns pedregulhos. Sua maçã do rosto ficou em carne viva. Fizeram uma assepsia, foi medicado, mas não houve necessidade de colocar nenhum curativo. Criou-se uma casca escura sobre a ferida, que com o tempo caíra, ficando a face tatuada por uma mancha rósea temporária. Posteriormente, o Rufino e o Edinho, irmão e primo, respectivamente, surpreenderam o Augusto copulando com uma galinha carijó. Na verdade, o coito nem fora concluído de fato, pois, com o susto das visitas inesperadas, a carijó foi lançada longe. Passados alguns dias a mãe de Augusto colocou a mesma carijó para chocar. Fez um ninho perto do forno à lenha, colocando sob a carijó uma dúzia de ovos. Passadas umas duas semanas, o Rufino chamou Augusto num canto:

           - Augusto, quando aquela galinha tirar os pintinhos, todo mundo vai ficar sabendo que você é o pai. Todos eles vão nascer com sua mancha na cara!

           Aquilo para o Augusto foi a morte. Ter uma dúzia de filhos pintos com a mesma mancha dele era inadmissível. E a sua moral na região? Mais que depressa, correu em direção ao ninho, arrancou a carijó no tapa e quebrou ovo por ovo, para garantir que sua descendência não teria penas.




Patos de Minas, 07/04/15

Namoro com a Branca


Jurandir, meu irmão mais velho, na época de sua juventude, lá pelos idos de 50 e 60, era metido a galã. Seu cavalo, preto e fogoso, tinha suas crinas, rabo e cascos sempre aparados e bem cuidados. A tralha era tratada com esmero. Ninguém, mas, ninguém mesmo, podia usar esse patrimônio pessoal e de valor inestimável. Suas roupas eram impecáveis. Calças de linho, muitas delas de cor branca, e camisas tinham que estar engomadas ao extremo. Passava-se roupa com ferro de brasa e no caso de algum resíduo de cinza ficar nas calças ou camisas, era motivo para não vesti-las. Os chapéus, vários e escolhidos para o uso de acordo com a solenidade, eram mantidos nas suas caixas originais sobre um guarda-roupa. Eram também intocáveis. Mantinha três pares de botas, de cano longo ou médio, de tonalidades de cores diferentes para uma perfeita combinação com o chapéu. Cabelos, cheios e muito pretos, eram mantidos alinhados com Brilhantina Glostora. Bigode espesso, enrolado nas pontas, sempre aparado. Nunca saia a passeio sem que a barba recebesse um tratamento de navalha e colônia.

           Naquela época na área rural, até que um homem pudesse dizer que estava namorando uma moça, e tinha que ser realmente moça, ou seja, virgem, ele teria que cumprir e seguir à risca um ritual quase que manualizado. O primeiro passo, que seria a demonstração de interesse, quase sempre era conduzido por uma amiga em comum ou por um parente. Os primeiros encontros, quando se iniciava a fase do flerte, na maioria das vezes ocorriam nas festas religiosas. Encontravam-se, trocavam algumas palavras e ficavam andando pra lá e pra cá, sem muito assunto, num silêncio quase absoluto. Se encontrasse algum banco desocupado, ficavam ali por certo tempo e, depois, voltavam ao vai-e-vem. Ficar a dois, lado a lado, sentados ou em pé, era chamado de ficar, andar ou estar de bonde ou "dibonde".

Após algum tempo nesta situação de aproximação, embora com poucas chances de um diálogo mais aprofundado e quando o casal, realmente, chegara à conclusão de que  queriam de fato o namoro, enfim combinavam uma ida do namorado à casa dos pais para pedir a autorização para o namoro. Se autorizado, então eles já podiam se encontrar com regularidade, quase sempre acompanhados de um irmão ou irmã mais novos. Após algum tempo se davam as mãos e, em casos furtuitos e bem planejados, era possível até mesmo roubar um beijo, tipo selinho. Sempre havia os mais afoitos e mais corajosos que burlavam estas regras, cujos resultados, quase sempre, eram um casamento forçado, pois naquele tempo não havia lugar para a moça desvirginada.

O Jurandir, certa vez, estava passando por esta fase. Ele se aprontou para ir pedir a mão da Branca do Sebastião Emiliano em namoro. Esmerou-se todo. Cavalo e arreata estavam brilhando. Calça branca de linho, camisa de seda. Bota lustrada. Barba e bigode aparados. Chapéu Cury de feltro, comprado especificamente para aquela ocasião. Para não sujar internamente o chapéu com brilhantina, ele aparou cuidadosamente um pedaço de papel, tipo cartolina, e forrou o fundo ou o coco do chapéu.

Chegando à casa do Sebastião Emiliano, foi recebido pela Branca. A família se postou na sala. Educadamente, ao entrar, tirou o chapéu e cumprimentou um a um, a começar pelos futuros sogros e depois mais uns dois ou três irmãos e uma tia ali presentes. À exceção dos futuros sogros, todos apresentavam um sorriso maroto e tinham os olhos fixos no chão. Jurandir entendeu que aquilo talvez fosse uma praxe da família, mas estava achando que havia alguma coisa estranha, pois, até mesmo a própria Branca estava se comportando de forma estranha. Bastante vermelha e também olhando fixamente para baixo.

Terminados os cumprimentos, o Tião Emiliano convidou o Jurandir para se assentar e aproveitou para perguntar:

- Jurandir, agora é moda andar com um papel na cabeça?

Aí a plateia não resistiu mais. Todos caíram numa gargalhada uníssona. O forro de proteção do chapéu, contra a brilhantina, grudara na cabeça do pretendente e ele, talvez movido por intensa expectativa e ansiedade, não percebera o adereço extra. Apressadamente, retirou o forro da cabeça, levantou-se, despediu-se de todos com um “até logo” e nunca mais foi visto de bonde com a Branca.




Patos de Minas, abril de 2015

Cadê você?



Me deixou, sem mais nem menos.

Me deixou, de presente, a solidão.

Me deixou conversando sozinho.

Me deixou eu comigo.

Não sabe que isso machuca?

Não sabe que isso dói?

Não sabe que isso sangra?

Não sabe que isso me extingue?

Volte!

Não precisa dizer, “eu te amo”.


Basta, apenas, “oi!”.


                                                                                                                                                                              Ariquemes, 05/02/15

Zé Teixeira


Zé Teixeira era um rapaz de cerca de 20 anos, franzino, comprido e bastante falante. Ali pelos idos de 60, vindo da região de Dores do Indaiá, chegou à fazenda de meu pai procurando trabalho. Conhecido de um antigo agregado da fazenda, o Zé Paraíba, não foi lhe negada a ajuda. Meu pai ofereceu-lhe uma roça para ser explorada no sistema de mearia e, por não ter onde ficar, foi acolhido na casa do Zé Paraíba. A família do Paraíba não era pequena, eram seis meninas e apenas um homem, o Zezinho. Maria era a mais velha, com apenas 15 anos. Posteriormente, nasceu mais um casal.

        Trabalhador e ágil, em pouco tempo, o Zé Teixeira foi ganhando a simpatia do pessoal da fazenda e da redondeza. Aos domingos participava das peladas de futebol e após os jogos, quase sempre, reunia uns amigos numa roda de viola nas vendas e botecos da região. O Teixeira era bom no ofício da viola. Nunca frequentara nenhuma escola de música. Tirava as modas de ouvido. Era também sucesso entre as adolescentes da região.

          Certa manhã, o Zé Paraíba chegou à casa de meu pai e o chamou para uma conversa em particular. A sua filha mais velha, a Maria, estava grávida do Teixeira. Meu pai assumiu organizar a papelada para o casamento. Era simples assim. Engravidou filha de família, ou casamento ou morte. Três meses depois nasceu o Denílson. Caboclo sadio e de choro forte. Era a alegria da família do Zé Paraíba. Parece que ele tomou tanto gosto pelo neto, que acabou encomendando mais um filho. Era tio mais novo que o sobrinho.

             Passados uns anos, a Maria e o Denílson foram visitar uns parentes na cidade de Unaí. O Teixeira, para ocupar o tempo, ficava auxiliando meu pai numa ou noutra atividade. Certo dia ele trouxe a tropa para o curral. Escovar, aparar as crinas, os rabos e os cascos, enfim, deixar a tropa mais vistosa.

               Após o tratamento, o Teixeira serviu sal e umas espigas de milho num cocho, sentou-se na última tábua da cerca do curral, aguardando que eles se saciassem. Nisso meu pai se aproximou, enrolando um pito de fumo, sentou-se ao lado do Teixeira e começaram a conversar.

            -   E aí, Zé, a tropa está bem bonita, né?
            -  Tá, seu Juca, muito bonita. Olha só a bunda daquela eguinha, como está redonda!
            -   Zé, amanhã mesmo, bem cedo, você se apronta e vai buscar a Maria!

Patos de Minas, abril de 2015

                

Lazinho


             O Lázaro morrera. Tinha apenas uns 35 anos. Chagásico, teve um ataque fulminante. Ele caiu a cerca de 200 metros da sede da fazenda de meu pai. Deixava um pedaço pequeno de terras, adquirido com muito esforço e sacrifício, e uma família com 6 filhos. Os mais velhos, Antônio, Juquinha e Lazinho já tinham idade suficiente para ganhar o seu próprio sustento. A Aparecida, após ficar um tempo com sua mãe cuidando dos irmãos menores, acabou indo para a zona de meretrício.

             A parte da herança que tocou para cada um dos filhos era muito pequena, pois a viúva tinha direito à metade. Assim mesmo, tentaram dar continuidade às atividades, plantando roça em todas as áreas onde fosse possível. Foram dividindo as dores e os sofrimentos e o pouco que lhes sobrava das colheitas.

             Lazinho, com o passar do tempo, resolveu tomar novos rumos, quebrar paradigmas. Procurou um vizinho e negociou com ele a parte que lhe tocara. Permutou seu quinhão de terra por um cavalo e toda sua tralha, tal qual, a sela completa, rédeas, freio, cabresto e, até mesmo, as esporas e o restante do preço combinado recebeu em dinheiro vivo. Não demorou muito e ele gastou este dinheiro nas vendas da região com cachaça e em jogo de sinuca.

            Em pouco tempo Lazinho descobriu que ter um cavalo que servia somente para passeios não era um bom negócio. Conseguiu, então, trocá-lo por uma égua e uma capinadeira ou carpideira de tração animal. A diferença de preço, mais uma vez, recebeu em dinheiro. Novamente, destinou este troco à cachaça e à sinuca.

             A égua e a capinadeira foram colocadas no serviço duro e pesado nas roças de seus irmãos. Com poucos dias de trabalho a égua amuou. Nem andar ela conseguia. Uma estafa total. Lazinho correu atrás e conseguiu outra permuta. Trocou a égua e a capinadeira por um revolver Rossi 38, acompanhado de uma caixa de bala. Ainda conseguiu uma diferença em dinheiro, que teve o mesmo destino das demais: cachaça e sinuca.

              Sem ferramenta de trabalho e sem dinheiro, e bastante aborrecido, Lazinho gastou a caixa de bala atirando em porteiras, cruzes à beira das estradas, em lagartos e passarinhos. Procurou um vizinho e trocou o Rossi por uma garrucha 22, mais 12 balas e uma pequena parte em dinheiro. O dinheiro em menos de uma semana foi consumido, mais uma vez, em cachaça e sinuca.

             Numa tarde de domingo, na venda do Tiãozinho Fonseca, bebeu tudo que achava que tinha direito. Na hora de pagar a dívida se deu conta que não tinha um centavo sequer. Tentou negociar a garrucha com os presentes, mas ninguém se interessou pela arma. Tiãozinho, para não ficar no prejuízo, então propôs trocar a garrucha pela dívida, dando-lhe de troco uma lata de bolachas Maria.

            A proposta foi prontamente aceita pelo Lazinho. Entregou a garrucha, colocou a lata de bolachas nos ombros e tomou o destino de casa. Cambaleando e tropeçando aqui e ali, desceu a ladeira em direção ao córrego Mata-burro. A passagem do córrego era feita numa pinguela, cujo corrimão era de bambu. Já estando no meio da pinguela, com uma mão segurando a lata no ombro e com a outra se apoiando no corrimão, cambaleou. Perdeu o equilíbrio e o corrimão não suportou o peso e se partiu. A queda foi grande. Eram mais de 3 metros de altura. Na queda, a lata de bolachas foi lançada contra umas toras de pinguelas antigas e quebradas no leito do córrego. Com o impacto, a tampa da lata não resistiu. Na medida que a lata ia afundando, as bolachas iam brotando no leito do córrego. Lazinho, estatelado sobre as toras, sem nada poder fazer, apenas ficou olhando o que restou de sua herança, que como um passe de mágica, nascia do fundo das águas e tomando o destino da corrente límpida, tranquila e silenciosa das águas do Mata-burro.
                                              

Patos de Minas, abril de 2015.

Flavinho

       

       Meu cunhado, Zazá, nos idos de 60, aceitara para residir em suas terras, como meeiro e agregado, o Sr. Antônio e Dona Guaraciaba. Tinham um filho, o Flavinho, já adolescente. Ele não batia bem das ideias. Diziam que era doente da cabeça. Mesmo com estes transtornos, ele sempre ajudara seus pais na lida da roça. Levantava às madrugadas, afiava a enxada ou a foice e ia para o batente.

       O Flavinho era apaixonado por caminhões. Agia como se um caminhão fosse. De manhã, na verdade, ele não saía de casa, saía da garagem. Com a ferramenta nas costas, ao lado da casa, se comportava como motorista. Assumia a cabine, girava a chave, tentando dar a partida. Bombeava um acelerador imaginário. Uma, duas, três vezes, até o possante pegar. Apertava fundo o acelerador e imitava o ronco do motor em seus mínimos detalhes. Aumentava e diminuía de acordo com a rotação da máquina.

         Enfim, motor aquecido, engatava uma ré e saia devagarinho, tomando cuidado para não esbarrar em nada, pois a Guaraciaba, mulher rígida, era muito zelosa com suas flores e rosas. Manobra feita, após desviar-se dos pés de eucalipto e de um araticum, o Flavinho embicava seu caminhão em direção à roça. Ia devagar, com extremo cuidado, fugindo dos buracos, pedras e tocos. As marchas, sem nenhum arranhão, iam sendo encaixadas de forma exata e numa sintonia perfeita. O ronco do motor, produzido pela garganta do Flavinho, parecia uma sinfonia. Tudo de acordo com a marcha em curso. Às vezes, atolava em algum lamaçal. O ronco da patinação era ouvido ao longe. Mas Flavinho não desistia. Forçava daqui, dali. Dava ré. Alinhava o caminhão e tentava quantas vezes fossem necessárias. Nunca ficou num atoleiro. Nas subidas e descidas íngremes, usava a marcha correta e o ruído do motor sempre estava devidamente ajustado.

        Assim era vida de Flavinho, indo ou vindo da roça, saindo a passeio ou buscando alguma encomenda nos comércios da vizinhança, ele sempre estava dando trabalho para seu caminhão. Ao longe, escutávamos o Flavinho subindo e descendo serras, atolando-se nas baixadas e dirigindo a toda velocidade nos chapadões.

           Após alguns anos, o Sr. Antônio buscou novos ares. Mudou com a família para a cidade.  Num caminhão de verdade, Studebaker da década de 40, a modesta mudança foi acomodada. Na cabine apertada, custou caber o motorista, Antônio e Guaraciaba. Flavinho, de pronto, já pulara para a carroceria. Abraçou-se ao gigante e foi fazendo dueto com o Studebaker, rumo à Lagoa Formosa.

        A estrada era péssima. A lentidão da viagem deve ter exigido muito da garganta de Flavinho. Isto não importava. Ele era a felicidade em pessoa, afinal, só ele e mais ninguém reconhecia a importância daquela viagem. Seria um dueto que nunca seria esquecido. Por anos a fio sua memória seria a guardiã daqueles momentos únicos. Uma quase sinfonia!

        Já próximo à Lagoa Formosa, a estrada melhorara consideravelmente. O dueto já era mais agudo. A diminuição da troca de marchas favorecia a garganta do Flavinho. Então, chega-se à descida do Santa Cruz, já quase na periferia. A velocidade do caminhão aumentara. O vento massageava a cara alegre e feliz de Flavinho. Uma lufada inesperada arranca-lhe o chapéu. Ele podia perder o dueto, mas não admitia perder o chapéu. Foi atrás. No voo do chapéu, ele voou junto. Conseguiu pegá-lo no ar, mas estatelou-se no chão duro e cascalhado da descida do Santa Cruz. Flavinho rolou por metros, com o chapéu na mão, e foi parar no meio do cerrado.

          Socorreram o Flavinho às pressas. Com as roupas em frangalhos, foi atendido no Posto de Saúde. Todo ralado, quase sem o couro, todo quebrado, chamou sua mãe para perto da cama e entregando-lhe o chapéu: - Mãe, conserta ele pra mim!?


Patos de Minas, abril de 2015

Eliaquim



As propriedades rurais de meu pai e do Eliaquim eram divididas por um córrego, o Mata-burro. Entre eles havia uma rixa antiga, porque o Eliaquim nem sempre cuidava das cercas. Como o córrego nas épocas de seca era muito raso, isto permitia que o gado circulasse de um lado para outro. E isto sempre é um transtorno no meio rural, pois encontrar alguém transitando em sua propriedade, via de regra, pode ser mal interpretado. Ao final de anos, esta rixa ganhou tamanha proporção que, sequer, se falavam. Quase uma inimizade.

          Numa tarde chuvosa, quando meu pai tocava um gado e já chegando perto do curral,  avistou uma pessoa esperando por ele no alpendre da casa. Era um vizinho do Eliaquim. Ele fora implorar por uma ajuda em favor do Eliaquim, que sofrera um acidente, pois meu pai era o único que tinha um veículo naquela região.

          Segundo ele, no manejo do gado, um touro de chifres longos e afiados, um curraleiro, avançara sobre o Eliaquim, que mesmo estando montado num cavalo de porte alto, fora atingido pelo chifre entre as pernas, deixando seus testículos à mostra.

       Esquecendo-se da rixa, meu pai, mais que depressa, pegou seu Jeep e foi em socorro do Eliaquim. Pouco tempo depois já estavam no consultório do Dr. Ophir em Lagoa Formosa.

Enquanto retiravam o paciente do Jeep, o Dr. Ophir, aproximou-se do meu pai.

- O que aconteceu, Juca?

-  Ophir, trouxe o Aliaquim aqui para você terminar o serviço que um boi começou.
               

Patos de Minas, abril de 2015

E meu pai conseguiu um casamento



Meu pai, quando jovem, saiu pelo mundo na companhia de um irmão mais velho, fruto do primeiro casamento de meu avô Martinsinho. Ambos abandonaram a lida nas roças no Mata-burrinho, deixando-a por conta dos outros quase 20 irmãos e meios-irmãos. A pé, numa caminhada próxima a 250 km, saíram de Patos de Minas e foram até Conquista, na região de Uberaba, onde conseguiram emprego nas Usinas Junqueira. Ali, conheceu as primeiras letras numa escola noturna, aprendeu a dirigir um Ford 29 e, em pouco tempo, ganhou respeito dos patrões. Sempre fora um homem sério, responsável e trabalhador. Isto foi na década de 20.

Um dos capatazes da fazenda, com o passar do tempo, tornou-se um admirador de meu pai, pois via nele um futuro diferente. Pouquíssimos eram os trabalhadores que se interessavam pelos estudos e em conhecer os equipamentos e veículos utilizados na produção da usina. Convenceu meu pai, conhecido como Juca Martins, a buscar outros rumos e então o encaminhou a um amigo em Bauru, onde, a conselhos, assentou praça na Força Pública do Estado de São Paulo, como motorista de ambulância. Cargo reservado somente a quem sabia ler, escrever e que tivesse a Carta de Motorista.

De motorista, em pouco tempo foi guindado às fileiras da Força Pública. Seu espírito nato de liderança, aliada a um nível cultural um pouco maior que o da maioria, o catapultou a promoções em ritmo crescente. Vieram as Revoluções de 29, 30 e 32. Ao final desta, já era Major aos 23 anos, quando foi preso, juntamente com os 6 homens que lhe restaram de sua companhia, pela Coluna Prestes às margens do Rio Paranapanema, que divide os Estados de São Paulo e Paraná.

Preso, foi enviado para o Rio de Janeiro, sendo recolhido à Ilha das Cobras. Dada a falta de motoristas à época, ele foi transferido para o Palácio do Presidente do Estado do Rio, onde prestava seus serviços a diversas autoridades, levando-as e buscando-as no aeroporto, estações de trens e ônibus.

De certa feita transportara o Presidente de Minas Gerais, Dr. Olegário Maciel, que também era natural de Patos de Minas. Durante o trajeto, entabularam uma conversa e logo veio à tona a coincidência de suas naturalidades. Meu pai, em poucas palavras relatou sua odisseia, desde que saíra da região de Mata-burrinho até às margens do Paranapanema. Admirado e comovido com a história, Olegário Maciel ofereceu-lhe pugnar pela sua libertação e, ao mesmo tempo, oferecera uma oportunidade de emprego em Patos de Minas, caso ele quisesse retornar ao rincão natal. Meu pai não titubeou, aceitou a ajuda e o cargo de Inspetor de Escola naquela região. Propostas ajustadas e com a interferência do Presidente Olegário, meu pai foi libertado, papelada regularizada e ainda conseguiu voltar para Belo Horizonte na comitiva de Olegário Maciel.

Voltando a Patos de Minas, já de posse da nomeação assinada pelo Presidente Olegário, meu pai se apresentou na Delegacia de Ensino e foi destacado para inspetoria escolar na mesma região e adjacências onde nascera e crescera. Foi acolhido na fazenda do Sr. Manoel Coelho, fazendeiro tradicional na região do Mata-burro.

Naquela época era comum a região receber sua denominação em decorrência dos nomes dos córregos da localidade. Assim a região do Mata-burro era aquela servida pelo córrego Mata-burro, a região do Mata-burrinho, afluente do Mata-burro, era aquela servida pelo córrego Mata-burrinho. Ainda tínhamos a Canjerana, o Baú, o Sapecado, o Lajeado e assim por diante.

Professor naquela época era muito respeitado. Já o Inspetor, era quase uma autoridade. Logo, meu pai gozava de algumas regalias na casa do Manoel Coelho. Eram apenas quatro os filhos de Manoel Coelho. Dois homens, o Manoel e o João. Duas filhas, a Maria e a Erlinda. Destas, a Erlinda era mais nova, mais bonita e mais assediada pelos rapazes da região. Provavelmente o velho Manoel Coelho reservava para ela um bom casamento, pois um casamento de conveniências fazia parte do contexto social daquela época. Quanto à Maria, não tão bonita quanto à Erlinda, ela tinha um temperamento explosivo, muito nervosa e não era muito chegada a rodeios. Ou era oito ou oitenta. Sem meios termos.

Em determinado dia, Manoel Coelho foi à Lagoa Formosa, distrito de Patos de Minas, distante uns 20 km de sua fazenda, e convidou meu pai para lhe fazer companhia na viagem. Meu pai não se fez de rogado. Selou um cavalo e saiu com o velho Manoel.

Cumpridas as obrigações, retornaram. Bem ao final da tarde, já descendo pelas encostas da fazenda do Antônio Camargo, em direção ao córrego do Lajeado, Manoel Coelho parou seu cavalo, apeou e começou a enrolar um pito de fumo. Mau pai lhe acompanhou neste afazer. Do outro lado do Lajeado, já era a fazenda do velho Manoel. Após a subida da encosta, num aclive bem suave, era um chapadão, todo ainda em mata. De onde estavam, era possível avistar a lateral leste de toda fazenda, com cerca de 2.500 metros, iniciando-se as divisas, à esquerda, pelo córrego do Mata-burro e, à direita, até a localidade denominada de Volta do Toco. Do córrego do Lajeado até o final do chapadão, no sentido oeste, era uma diagonal de cerca de 800 m. Portanto, eles estavam de frente de parte da fazenda do velho Manoel, medindo cerca de 200 hectares de terra, algo em torno de 80 alqueires mineiros.

Após algumas tragadas, o velho Manoel, voltou-se para meu pai e num tom firme, disse:

- Juca, se você acertar quantos alqueires das minhas terras estamos vendo daqui, eu lhe dou a Maria em casamento.

Meu pai foi pego de surpresa e talvez não fosse bem essa a intenção dele em relação às filhas do velho Manoel. Matreiramente e buscando esquivar-se da armadilha, não vacilou:

- Sô Manoel, eu cálculo que estamos de frente a uns 40 alqueires de terra.

- Na mosca, Juca, pode marcar a data do casamento.

Patos de Minas, abril de 2015


sábado, 10 de janeiro de 2015

Pensando em pensar



Estou pensando em pensar que nem sempre vale a pena.
Estou pensando em pensar que esquecer é algo sem sentido.
Estou pensando em pensar que continuar não chega a lugar nenhum.
Estou pensando em pensar que solidão não é estar só.
Estou pensando em pensar que o fim não justifica o meio.
Estou pensando em pensar que a certeza é inquestionável.
Estou pensando em pensar que a ignorância não é burrice.
Estou pensando em pensar que a exatidão não é fato.
Estou pensando em pensar que o erro não é equívoco.
Estou pensando em pensar que o insucesso não é decepção.
Estou pensando em pensar que a pobreza não é desamparo.
Estou pensando em pensar que o sentimento não é emoção.
Estou pensando em pensar que o prazer não é êxtase.
Estou pensando em pensar que o sofrimento não é tragédia.
Estou pensando em pensar que a alegria não é loucura.
Estou pensando em pensar que a tristeza não é desilusão.
Estou pensando em pensar que a beleza não é sedução.
Estou pensando em pensar que o desejo não é tentação.
Estou pensando em pensar que a indiferença não é apatia.
Estou pensando em pensar que o ódio não é repugnância.
Estou pensando em pensar que a cortesia não é delicadeza.

Estou pensando em  pensar que o amor se vulgarizou.


Martins
10/01/14

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Aparecida e Vó Cristina


            De certa feita, Aparecida, menina moça e um pouco assanhada, perdeu-se na vida. Não resistindo aos clamores hormonais, entregou-se ao Tõe do Zé Domingo. Nunca confirmara que fora com ele, mas era o que o povo dizia.
            Naquela época, menina perdida só tinha um caminho: a zona de meretrício. Quase sempre, era encaminhada por um parente ou por um padrinho que a entregava sob os cuidados da dona de um lupanar.  

            Aparecida gostava muito de minha avó. A velha Cristina sempre tinha um bom conselho. Era amiga de todos. A coitada da Aparecida, às vésperas, de se novo desígnio, fora visitar a avó Cristina. Despedir-se e pedir-lhe a benção.

            A velha Cristina, pacientemente, ouviu as queixas e as mágoas da Aparecida. Eram muitas. Afinal, era um castigo muito grande, por tão pouco. Uma execração!  Para ambas era impossível entender que a honra da mulher tivesse residência fixa entre as pernas. Mas, às mulheres daquela época não cabia discutir ou contestar. À Aparecida só restavam duas opções: sumir no mundo ou acatar, resignadamente, a decisão daquela sociedade rural machista e desumana. O mundo dela era muito pequeno para se esconder. Seu mundo pouco ultrapassava a cerca da pequenina propriedade rural de seu pai.
            Depois de muito ouvir, a avó Cristina, pensativa e com lágrimas nos olhos, tomando, entre as suas, as mãos mal cuidadas de Aparecida, saiu com essa:

            -           Minha filha, isto não é o fim. Pode ser até um começo. Pois uma bunda, se bem administrada e gerenciada, dá mais lucro que morar na roça.

* * *

Martins
13/0214

sábado, 21 de maio de 2011

A Placa



          Geraldinho e Tito Lívio eram Inspetores de Banco. Amigos inseparáveis. Sempre buscavam uma forma de trabalharem em dupla ou de adequarem suas escalas de serviço para ficarem sempre numa mesma região. Assim conseguiam reduzir as despesas com hotel e com transporte e a elaboração dos relatórios de inspeção era feita a quatro mãos. Ganho financeiro e na qualidade dos trabalhos.

          De certa feita no Sul de Minas, isto na década de 80, saíram de Três Corações em direção a Caxambu. Passando por Cambuquira, entraram na cidade, pois o Geraldinho havia se esquecido de jogar na Loteria Esportiva. Buscaram uma Casa Lotérica e, enquanto o Geraldinho cumpria o ritual, o Tito ficara no carro, ouvindo uma fita cassete de músicas sertanejas em seu Roadstar. O dia estava muito frio e Tito manteve os vidros fechados.

          Aproximou-se, depois de pouco tempo, um policial militar. Bateu no vidro. Tito abaixou o vidro, cumprimentando o praça:

          - Bom dia, seu guarda!
          - Dia! Documentos do veículo e do condutor!
          - Pois não.

          Fez a aferição de praxe, contornou o veículo, conferiu a placa e luzes e, ao retornar, já estava com o Bloco de Multas na mão.

          - O senhor vai ser multado!
          - Eu!? Está tudo em ordem!
          - Tá não!!! Aqui é estacionamento proibido!
          - Não tem nenhuma sinalização! Nem placa e nem nada.
          - A placa aqui sou eu!

          Então, o Tito achando que era uma brincadeira, resolveu dar corda à situação:

          - E quando a placa for almoçar? Tá tudo liberado?
          - Teje preso!!!
          Geraldinho, entretido em seus afazeres, não percebera o que estava ocorrendo. Somente ao sair da Lotérica é que se deu conta do imbróglio. Por mais que argumentassem, mesmo apresentando suas identidades funcionais, nada adiantou. Foram os dois para a Delegacia sob a acusação de Desacato à Autoridade.

Martins
21/04/11

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Razão e Sentimentos


         
          Minh’alma e eu já tínhamos um armistício assegurado. Até mesmo meu alter ego nele fora incluído. Seria inadequadamente descortês o meu todo eu não estar compartilhado. Nesse pacto foi estabelecida uma nova ordem sentimental. Ainda não era um tratado de paz, propriamente dito, mas o consideraríamos como tal. O coração sofrera uma ruptura drástica. Praticamente, fora castrado. Doravante, a quietude imperaria. Meus sonhos se resumiriam na pouquidão de alguns pequenos anseios. Na estreiteza de ínfimas fantasias. Nalguns retalhos de ambição e fragmentos de esperança. Num minguado e contido enlevo eventual. Em limitados e mirrados momentos da brevidade de uma paixão. O ordenamento poderia não ser perfeito, mas funcionava. A limitação encurta, mas simplifica. Se mutila, também alivia. Ela definha, mas minimiza. Muitas vezes abrevia e estreita. É estoicismo? Talvez, mas Bandeira também me ajudava: “O que não tenho e desejo, é que melhor me enriquece”.

          Um estado de sofreguidão leva à indiferença. Os sentimentos são fleumatizados. O desinteresse castra as fantasias. A concupiscência é despretensiosa. O fascínio de uma sedução torna-se fútil. Todavia, se coração enjaulado, permite-se mais tempo ao intelecto. Perdas terão que ser compensadas. A gênese do interior do ser humano parece seguir uma rigidez contábil. A regra das partilhas dobradas. Cada débito corresponde a um crédito de igual valor. Sua soma é sempre igual a zero. Perde-se aqui, ganha-se o mesmo ali. Então, essa contabilidade da alma humana permite o equilíbrio necessário. O sistema passa a produzir de forma harmônica, em que pese, às vezes, não estar de acordo com o coração.

          Esse arranjo, quase sempre, simples e disciplinado, se situa no liame entre o admitido e o desejado. Logo, é tênue. Frágil e débil. Um simples “oi!”. Um sorriso maroto. A meiguice de apenas um “sim!”. Um despretensioso olhar, terno e sôfrego. Ou a fragrância de um perfume. Toda esta estabilidade pode ruir fragorosamente. O conflito interior torna-se sem medidas. O caos passa a imperar. Razão e Sentimentos travam uma batalha insana. Sem nenhuma concepção prévia, seus exércitos partem para o embate. Desorganizadamente, os carros de combate são lançados. As patas dos ginetes produzem um estrondo ensurdecedor. O zunido sibilante das flechas causa calafrios. O choque dos escudos e espadas ensurdece. Elmos e membros são ceifados pela lâmina. Cabeças rolam, a carne é dilacerada. Lanças traspassam. O sangue jorra. Rugidos de dor se espalham. As portas do inferno foram abertas. Após dias, semanas ou meses, Razão e Sentimentos quedam-se no centro do campo de batalha. Calados, não encontram justificativas para tanta dor e sofrimento. A alma esfacelada e em frangalhos. Fora martirizada e supliciada ao extremo. A ardência no coração é quase insuportável. Até a vontade do não mais viver parece bater à porta.

          Por fim, se abraçam. Seguem, de braços dados, em direção ao horizonte. Espadas, lanças, arcos e flechas vão sendo despojados pelo caminho. Despem-se dos escudos, dos elmos e armaduras. Uma batalha sem vencedor. Sem espólios. Restaram cansaço e exaustão. Sentam-se e, olho no olho, confabulam. O coração lhes ouve e atende. Tem-se o parto de um novo começo. Um novo eu cheirando criança nova.

Martins
22/02/11

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Poder da Incerteza



Hesito.
Tudo é impreciso.
É apenas um engano?
Ou talvez um equívoco?
Não seria o trilhar caminhos das hipóteses?
Insegurança, confusão, desconfiança e embaraço.
É um dilema sem fim!
Perplexo, no gume da ambigüidade, me lanço ao reino da obscuridade.
Talvez a certeza se encontre do outro lado.

Lá não haverá duvidas.
Muito menos suposições.
O norte lá é norte. Não há que conjeturá-lo.
Não mais quero o incerto.
Vomito ante a presença do indeciso.
Cansei-me do questionável e do controverso.
Do indefinido e do opinativo.
Também não mais quero o contestável e o discutível.
À forca o enigmático e o misterioso!
Que o falível seja guilhotinado!

Lá terei a veludez da pele.
Sentirei o afago do abraço.
E a protuberância dos seios.
O entrelaçar de pernas e coxas.
Mãos e olhares falarão.
Gemidos não serão de dor.
O prazer não será precário, muito menos, ocasional.
Será indubitável.
Os segredos desfeitos.
O silêncio terá sons.
A felicidade será imperativa.
O irrefutável será o óbvio.
O absoluto será inquestionável.
O preciso, exato.
O fidedigno, inegável.
À merda com a incerteza!!!



Martins
25/08/10