sábado, 21 de maio de 2011

A Placa



          Geraldinho e Tito Lívio eram Inspetores de Banco. Amigos inseparáveis. Sempre buscavam uma forma de trabalharem em dupla ou de adequarem suas escalas de serviço para ficarem sempre numa mesma região. Assim conseguiam reduzir as despesas com hotel e com transporte e a elaboração dos relatórios de inspeção era feita a quatro mãos. Ganho financeiro e na qualidade dos trabalhos.

          De certa feita no Sul de Minas, isto na década de 80, saíram de Três Corações em direção a Caxambu. Passando por Cambuquira, entraram na cidade, pois o Geraldinho havia se esquecido de jogar na Loteria Esportiva. Buscaram uma Casa Lotérica e, enquanto o Geraldinho cumpria o ritual, o Tito ficara no carro, ouvindo uma fita cassete de músicas sertanejas em seu Roadstar. O dia estava muito frio e Tito manteve os vidros fechados.

          Aproximou-se, depois de pouco tempo, um policial militar. Bateu no vidro. Tito abaixou o vidro, cumprimentando o praça:

          - Bom dia, seu guarda!
          - Dia! Documentos do veículo e do condutor!
          - Pois não.

          Fez a aferição de praxe, contornou o veículo, conferiu a placa e luzes e, ao retornar, já estava com o Bloco de Multas na mão.

          - O senhor vai ser multado!
          - Eu!? Está tudo em ordem!
          - Tá não!!! Aqui é estacionamento proibido!
          - Não tem nenhuma sinalização! Nem placa e nem nada.
          - A placa aqui sou eu!

          Então, o Tito achando que era uma brincadeira, resolveu dar corda à situação:

          - E quando a placa for almoçar? Tá tudo liberado?
          - Teje preso!!!
          Geraldinho, entretido em seus afazeres, não percebera o que estava ocorrendo. Somente ao sair da Lotérica é que se deu conta do imbróglio. Por mais que argumentassem, mesmo apresentando suas identidades funcionais, nada adiantou. Foram os dois para a Delegacia sob a acusação de Desacato à Autoridade.

Martins
21/04/11

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Razão e Sentimentos


         
          Minh’alma e eu já tínhamos um armistício assegurado. Até mesmo meu alter ego nele fora incluído. Seria inadequadamente descortês o meu todo eu não estar compartilhado. Nesse pacto foi estabelecida uma nova ordem sentimental. Ainda não era um tratado de paz, propriamente dito, mas o consideraríamos como tal. O coração sofrera uma ruptura drástica. Praticamente, fora castrado. Doravante, a quietude imperaria. Meus sonhos se resumiriam na pouquidão de alguns pequenos anseios. Na estreiteza de ínfimas fantasias. Nalguns retalhos de ambição e fragmentos de esperança. Num minguado e contido enlevo eventual. Em limitados e mirrados momentos da brevidade de uma paixão. O ordenamento poderia não ser perfeito, mas funcionava. A limitação encurta, mas simplifica. Se mutila, também alivia. Ela definha, mas minimiza. Muitas vezes abrevia e estreita. É estoicismo? Talvez, mas Bandeira também me ajudava: “O que não tenho e desejo, é que melhor me enriquece”.

          Um estado de sofreguidão leva à indiferença. Os sentimentos são fleumatizados. O desinteresse castra as fantasias. A concupiscência é despretensiosa. O fascínio de uma sedução torna-se fútil. Todavia, se coração enjaulado, permite-se mais tempo ao intelecto. Perdas terão que ser compensadas. A gênese do interior do ser humano parece seguir uma rigidez contábil. A regra das partilhas dobradas. Cada débito corresponde a um crédito de igual valor. Sua soma é sempre igual a zero. Perde-se aqui, ganha-se o mesmo ali. Então, essa contabilidade da alma humana permite o equilíbrio necessário. O sistema passa a produzir de forma harmônica, em que pese, às vezes, não estar de acordo com o coração.

          Esse arranjo, quase sempre, simples e disciplinado, se situa no liame entre o admitido e o desejado. Logo, é tênue. Frágil e débil. Um simples “oi!”. Um sorriso maroto. A meiguice de apenas um “sim!”. Um despretensioso olhar, terno e sôfrego. Ou a fragrância de um perfume. Toda esta estabilidade pode ruir fragorosamente. O conflito interior torna-se sem medidas. O caos passa a imperar. Razão e Sentimentos travam uma batalha insana. Sem nenhuma concepção prévia, seus exércitos partem para o embate. Desorganizadamente, os carros de combate são lançados. As patas dos ginetes produzem um estrondo ensurdecedor. O zunido sibilante das flechas causa calafrios. O choque dos escudos e espadas ensurdece. Elmos e membros são ceifados pela lâmina. Cabeças rolam, a carne é dilacerada. Lanças traspassam. O sangue jorra. Rugidos de dor se espalham. As portas do inferno foram abertas. Após dias, semanas ou meses, Razão e Sentimentos quedam-se no centro do campo de batalha. Calados, não encontram justificativas para tanta dor e sofrimento. A alma esfacelada e em frangalhos. Fora martirizada e supliciada ao extremo. A ardência no coração é quase insuportável. Até a vontade do não mais viver parece bater à porta.

          Por fim, se abraçam. Seguem, de braços dados, em direção ao horizonte. Espadas, lanças, arcos e flechas vão sendo despojados pelo caminho. Despem-se dos escudos, dos elmos e armaduras. Uma batalha sem vencedor. Sem espólios. Restaram cansaço e exaustão. Sentam-se e, olho no olho, confabulam. O coração lhes ouve e atende. Tem-se o parto de um novo começo. Um novo eu cheirando criança nova.

Martins
22/02/11

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O Poder da Incerteza



Hesito.
Tudo é impreciso.
É apenas um engano?
Ou talvez um equívoco?
Não seria o trilhar caminhos das hipóteses?
Insegurança, confusão, desconfiança e embaraço.
É um dilema sem fim!
Perplexo, no gume da ambigüidade, me lanço ao reino da obscuridade.
Talvez a certeza se encontre do outro lado.

Lá não haverá duvidas.
Muito menos suposições.
O norte lá é norte. Não há que conjeturá-lo.
Não mais quero o incerto.
Vomito ante a presença do indeciso.
Cansei-me do questionável e do controverso.
Do indefinido e do opinativo.
Também não mais quero o contestável e o discutível.
À forca o enigmático e o misterioso!
Que o falível seja guilhotinado!

Lá terei a veludez da pele.
Sentirei o afago do abraço.
E a protuberância dos seios.
O entrelaçar de pernas e coxas.
Mãos e olhares falarão.
Gemidos não serão de dor.
O prazer não será precário, muito menos, ocasional.
Será indubitável.
Os segredos desfeitos.
O silêncio terá sons.
A felicidade será imperativa.
O irrefutável será o óbvio.
O absoluto será inquestionável.
O preciso, exato.
O fidedigno, inegável.
À merda com a incerteza!!!



Martins
25/08/10

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Eu sou um catador de esperanças



          O Aparecido, não raras vezes, presta um ou outro serviço em minha propriedade rural. Pernambucano de origem, mas de sotaque já perdido, carrega nos ombros a simplicidade e a alegria de viver. Vive dos braços e das mãos calejadas. Descobri, há pouco tempo, que também é compositor. Estilo brega raiz. Faz a melodia e a letra. A letra é guardada em rascunhos e a melodia na cabeça. Nunca estudou música e não toca nenhum instrumento.

          Dias atrás, uma chuva forte nos arrastou para um mesmo abrigo. Eu esquecera a capa de chuva. Para proteger a arreata, acomodei o cavalo sob a cocheira. Ali ficamos os três. O Lampião descansava, revezando o apoio em três patas. Aparecido e eu, sentados no cocho e driblando as goteiras e respingos, fomos falando sobre coisas. Ele afiava a foice e eu remoia a curiosidade sobre o artista. Enquanto o Lampião cochilava em pé, comecei a instigar a musicidade do Aparecido. Para mim musicalidade é a exteriorização da musicidade. Esta é o dom e aquela o talento, a capacidade.

          Pouco ou quase nada letrado, a dificuldade de expressão é muito grande. O entendimento é dificultado. As explicações são muito figurativas. Mesmo assim, fui desbravando, aos poucos, as vagas do desconhecido. Sempre entendi que o músico concebe a melodia. Depois, se for o caso, é construída uma poesia. Desta forma, estabelece-se a base para um processo de aprimoramento com harmonia e arranjos. Mas, não, o Aparecido, segundo minha ótica, inverte o processo. Ele monta a letra e depois compõe a melodia.

          Tudo isto tumultuou minha lógica. O cara nunca estudou música, não toca nenhum instrumento e, praticamente, sem estudos, no entanto, consegue ser poeta e compositor. É o dom na essência da palavra.

          - Sô, Martins, a coisa é muito simples. Quando me vem uma idéia na cabeça, eu sento e vou escrevendo. Aí, pego um dicionariozinho velho que tenho lá em casa e vou corrigindo e substituindo umas palavras. A rima tem que ficar boa e de acordo com a batida. Mostro para algumas pessoas e elas vão me ajudando. Aumenta aqui, tira ali. A música vai nascendo, aos poucos, na minha cabeça. E ela fica bem guardadinha lá. Não esqueço de jeito nenhum. Quando estiver tudo pronto, procuro uns amigos que tocam instrumento e a gente, então, passa para o papel. O senhor sabe, minhas dificuldades são muitas e meus recursos pequenos. Eu sou um catador de esperanças. Cato um pouco aqui, outro ali e, assim, vou fazendo minhas músicas.


Martins
22/01/11