Meu cunhado,
Zazá, nos idos de 60, aceitara para residir em suas terras, como meeiro e
agregado, o Sr. Antônio e Dona Guaraciaba. Tinham um filho, o Flavinho, já
adolescente. Ele não batia bem das ideias. Diziam que era doente da cabeça.
Mesmo com estes transtornos, ele sempre ajudara seus pais na lida da roça.
Levantava às madrugadas, afiava a enxada ou a foice e ia para o batente.
O
Flavinho era apaixonado por caminhões. Agia como se um caminhão fosse. De
manhã, na verdade, ele não saía de casa, saía da garagem. Com a ferramenta nas
costas, ao lado da casa, se comportava como motorista. Assumia a cabine, girava
a chave, tentando dar a partida. Bombeava um acelerador imaginário. Uma, duas,
três vezes, até o possante pegar. Apertava fundo o acelerador e imitava o ronco
do motor em seus mínimos detalhes. Aumentava e diminuía de acordo com a rotação
da máquina.
Enfim,
motor aquecido, engatava uma ré e saia devagarinho, tomando cuidado para não
esbarrar em nada, pois a Guaraciaba, mulher rígida, era muito zelosa com suas
flores e rosas. Manobra feita, após desviar-se dos pés de eucalipto e de um
araticum, o Flavinho embicava seu caminhão em direção à roça. Ia devagar, com
extremo cuidado, fugindo dos buracos, pedras e tocos. As marchas, sem nenhum
arranhão, iam sendo encaixadas de forma exata e numa sintonia perfeita. O ronco
do motor, produzido pela garganta do Flavinho, parecia uma sinfonia. Tudo de
acordo com a marcha em curso. Às vezes, atolava em algum lamaçal. O ronco da
patinação era ouvido ao longe. Mas Flavinho não desistia. Forçava daqui, dali.
Dava ré. Alinhava o caminhão e tentava quantas vezes fossem necessárias. Nunca
ficou num atoleiro. Nas subidas e descidas íngremes, usava a marcha correta e o
ruído do motor sempre estava devidamente ajustado.
Assim
era vida de Flavinho, indo ou vindo da roça, saindo a passeio ou buscando
alguma encomenda nos comércios da vizinhança, ele sempre estava dando trabalho
para seu caminhão. Ao longe, escutávamos o Flavinho subindo e descendo serras,
atolando-se nas baixadas e dirigindo a toda velocidade nos chapadões.
Após
alguns anos, o Sr. Antônio buscou novos ares. Mudou com a família para a
cidade. Num caminhão de verdade,
Studebaker da década de 40, a modesta mudança foi acomodada. Na cabine
apertada, custou caber o motorista, Antônio e Guaraciaba. Flavinho, de pronto,
já pulara para a carroceria. Abraçou-se ao gigante e foi fazendo dueto com o
Studebaker, rumo à Lagoa Formosa.
A
estrada era péssima. A lentidão da viagem deve ter exigido muito da garganta de
Flavinho. Isto não importava. Ele era a felicidade em pessoa, afinal, só ele e
mais ninguém reconhecia a importância daquela viagem. Seria um dueto que nunca
seria esquecido. Por anos a fio sua memória seria a guardiã daqueles momentos
únicos. Uma quase sinfonia!
Já
próximo à Lagoa Formosa, a estrada melhorara consideravelmente. O dueto já era
mais agudo. A diminuição da troca de marchas favorecia a garganta do Flavinho.
Então, chega-se à descida do Santa Cruz, já quase na periferia. A velocidade do
caminhão aumentara. O vento massageava a cara alegre e feliz de Flavinho. Uma
lufada inesperada arranca-lhe o chapéu. Ele podia perder o dueto, mas não
admitia perder o chapéu. Foi atrás. No voo do chapéu, ele voou junto. Conseguiu
pegá-lo no ar, mas estatelou-se no chão duro e cascalhado da descida do Santa
Cruz. Flavinho rolou por metros, com o chapéu na mão, e foi parar no meio do
cerrado.
Socorreram
o Flavinho às pressas. Com as roupas em frangalhos, foi atendido no Posto de
Saúde. Todo ralado, quase sem o couro, todo quebrado, chamou sua mãe para perto
da cama e entregando-lhe o chapéu: - Mãe,
conserta ele pra mim!?
Patos de Minas, abril de 2015
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