sábado, 11 de abril de 2015

Flavinho

       

       Meu cunhado, Zazá, nos idos de 60, aceitara para residir em suas terras, como meeiro e agregado, o Sr. Antônio e Dona Guaraciaba. Tinham um filho, o Flavinho, já adolescente. Ele não batia bem das ideias. Diziam que era doente da cabeça. Mesmo com estes transtornos, ele sempre ajudara seus pais na lida da roça. Levantava às madrugadas, afiava a enxada ou a foice e ia para o batente.

       O Flavinho era apaixonado por caminhões. Agia como se um caminhão fosse. De manhã, na verdade, ele não saía de casa, saía da garagem. Com a ferramenta nas costas, ao lado da casa, se comportava como motorista. Assumia a cabine, girava a chave, tentando dar a partida. Bombeava um acelerador imaginário. Uma, duas, três vezes, até o possante pegar. Apertava fundo o acelerador e imitava o ronco do motor em seus mínimos detalhes. Aumentava e diminuía de acordo com a rotação da máquina.

         Enfim, motor aquecido, engatava uma ré e saia devagarinho, tomando cuidado para não esbarrar em nada, pois a Guaraciaba, mulher rígida, era muito zelosa com suas flores e rosas. Manobra feita, após desviar-se dos pés de eucalipto e de um araticum, o Flavinho embicava seu caminhão em direção à roça. Ia devagar, com extremo cuidado, fugindo dos buracos, pedras e tocos. As marchas, sem nenhum arranhão, iam sendo encaixadas de forma exata e numa sintonia perfeita. O ronco do motor, produzido pela garganta do Flavinho, parecia uma sinfonia. Tudo de acordo com a marcha em curso. Às vezes, atolava em algum lamaçal. O ronco da patinação era ouvido ao longe. Mas Flavinho não desistia. Forçava daqui, dali. Dava ré. Alinhava o caminhão e tentava quantas vezes fossem necessárias. Nunca ficou num atoleiro. Nas subidas e descidas íngremes, usava a marcha correta e o ruído do motor sempre estava devidamente ajustado.

        Assim era vida de Flavinho, indo ou vindo da roça, saindo a passeio ou buscando alguma encomenda nos comércios da vizinhança, ele sempre estava dando trabalho para seu caminhão. Ao longe, escutávamos o Flavinho subindo e descendo serras, atolando-se nas baixadas e dirigindo a toda velocidade nos chapadões.

           Após alguns anos, o Sr. Antônio buscou novos ares. Mudou com a família para a cidade.  Num caminhão de verdade, Studebaker da década de 40, a modesta mudança foi acomodada. Na cabine apertada, custou caber o motorista, Antônio e Guaraciaba. Flavinho, de pronto, já pulara para a carroceria. Abraçou-se ao gigante e foi fazendo dueto com o Studebaker, rumo à Lagoa Formosa.

        A estrada era péssima. A lentidão da viagem deve ter exigido muito da garganta de Flavinho. Isto não importava. Ele era a felicidade em pessoa, afinal, só ele e mais ninguém reconhecia a importância daquela viagem. Seria um dueto que nunca seria esquecido. Por anos a fio sua memória seria a guardiã daqueles momentos únicos. Uma quase sinfonia!

        Já próximo à Lagoa Formosa, a estrada melhorara consideravelmente. O dueto já era mais agudo. A diminuição da troca de marchas favorecia a garganta do Flavinho. Então, chega-se à descida do Santa Cruz, já quase na periferia. A velocidade do caminhão aumentara. O vento massageava a cara alegre e feliz de Flavinho. Uma lufada inesperada arranca-lhe o chapéu. Ele podia perder o dueto, mas não admitia perder o chapéu. Foi atrás. No voo do chapéu, ele voou junto. Conseguiu pegá-lo no ar, mas estatelou-se no chão duro e cascalhado da descida do Santa Cruz. Flavinho rolou por metros, com o chapéu na mão, e foi parar no meio do cerrado.

          Socorreram o Flavinho às pressas. Com as roupas em frangalhos, foi atendido no Posto de Saúde. Todo ralado, quase sem o couro, todo quebrado, chamou sua mãe para perto da cama e entregando-lhe o chapéu: - Mãe, conserta ele pra mim!?


Patos de Minas, abril de 2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário