segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Eu sou um catador de esperanças



          O Aparecido, não raras vezes, presta um ou outro serviço em minha propriedade rural. Pernambucano de origem, mas de sotaque já perdido, carrega nos ombros a simplicidade e a alegria de viver. Vive dos braços e das mãos calejadas. Descobri, há pouco tempo, que também é compositor. Estilo brega raiz. Faz a melodia e a letra. A letra é guardada em rascunhos e a melodia na cabeça. Nunca estudou música e não toca nenhum instrumento.

          Dias atrás, uma chuva forte nos arrastou para um mesmo abrigo. Eu esquecera a capa de chuva. Para proteger a arreata, acomodei o cavalo sob a cocheira. Ali ficamos os três. O Lampião descansava, revezando o apoio em três patas. Aparecido e eu, sentados no cocho e driblando as goteiras e respingos, fomos falando sobre coisas. Ele afiava a foice e eu remoia a curiosidade sobre o artista. Enquanto o Lampião cochilava em pé, comecei a instigar a musicidade do Aparecido. Para mim musicalidade é a exteriorização da musicidade. Esta é o dom e aquela o talento, a capacidade.

          Pouco ou quase nada letrado, a dificuldade de expressão é muito grande. O entendimento é dificultado. As explicações são muito figurativas. Mesmo assim, fui desbravando, aos poucos, as vagas do desconhecido. Sempre entendi que o músico concebe a melodia. Depois, se for o caso, é construída uma poesia. Desta forma, estabelece-se a base para um processo de aprimoramento com harmonia e arranjos. Mas, não, o Aparecido, segundo minha ótica, inverte o processo. Ele monta a letra e depois compõe a melodia.

          Tudo isto tumultuou minha lógica. O cara nunca estudou música, não toca nenhum instrumento e, praticamente, sem estudos, no entanto, consegue ser poeta e compositor. É o dom na essência da palavra.

          - Sô, Martins, a coisa é muito simples. Quando me vem uma idéia na cabeça, eu sento e vou escrevendo. Aí, pego um dicionariozinho velho que tenho lá em casa e vou corrigindo e substituindo umas palavras. A rima tem que ficar boa e de acordo com a batida. Mostro para algumas pessoas e elas vão me ajudando. Aumenta aqui, tira ali. A música vai nascendo, aos poucos, na minha cabeça. E ela fica bem guardadinha lá. Não esqueço de jeito nenhum. Quando estiver tudo pronto, procuro uns amigos que tocam instrumento e a gente, então, passa para o papel. O senhor sabe, minhas dificuldades são muitas e meus recursos pequenos. Eu sou um catador de esperanças. Cato um pouco aqui, outro ali e, assim, vou fazendo minhas músicas.


Martins
22/01/11

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