Contava meu pai que, lá pelos idos de 1920, ele, menino de 10 a 11 anos, era o candieiro oficial da família. O candieiro era o ajudante do carreiro. Era cargo de confiança, pois candieiro bom e esperto era certeza de viagem de carro de boi bem sucedida. Tinha que conhecer as estradas e ser íntimo das juntas de boi.
Na véspera da viagem, era dia de organizar a tralha. Conferir tudo, uma revisão geral no carro de boi. Olhar o estado da mesa. Desentupir buraco de fueiro na cheda. Muitas vezes o fueiro quebrava e ficava um pedaço de madeira encravado. Repor fueiros e conferir a esteira e o caniço. Testar o eixo, os cocões, o chumaço e a cantadeira. Tudo untado para ter uma cantiga afinada. Separar as cangas, colocar os canzis e as brochas. Organizar os cambões, as tiradeiras e os tambueiros. Nunca esquecer de passar sebo em tudo que é de couro. Ferrar as varas e apartar a boiada de carro num pastinho perto da porta. Carreiro que se preza, viaja antes do nascer do sol. Um moca na tigela esmaltada e um pito de fumo de rolo. Boiada no curral e vão se formando as juntas ligadas pelos cambões. Primeiro a guia, depois o pé-de-guia, meio, coice e de cabeçalho. Cada boi tem o lado certo na junta. Por fim, encaixa-se o cabeçalho na canga e prende-se com a chaveia. Tudo pronto, então é hora de forrar o estômago. Desjejum com tutu, ovo frito e lingüiça. Pendura-se nos fueiros a cabaça com água, capanga com matula, geralmente, paçoca e uma garrafa de cachaça de engenho. Mais um pito de fumo e se pega a estrada.
Voltando a meu pai, contava-nos ele que, àquela época, ele fora escalado como candieiro pelo meu avô para uma viagem a Patos de Minas, distante uns 20 km do Leal, localidade de origem da minha família. O carreiro era um tio-avô, o tio Martinzinho. Homem rude, de poucas palavras, mas extremamente religioso. Saíram de madrugadinha, no cantar dos galos. Era final de mês de maio. O frio era intenso. O couro ressecado das botinas não combinava com os pés gelados. A viagem pouco rendia na madrugada. Os pés pareciam, a cada minuto, mais rígidos. As mãos desprotegidas ficavam quase roxas. O rosto queimava-se pelo vento. Nem o andar conseguia aquecer um pouco aqueles corpos franzinos. Era uma verdadeira via sacra.
Ao longo da estrada, aqui e acolá, sempre existia uma cruz. Marcava o lugar de uma morte, natural ou não. Martinzinho, quase sempre, sentado no recabém do carro e fumando um pito de fumo, ia gritando com os bois, exigindo mais pressa. “Vai Maiado ... vai Segredo! Firma Sete-Ouro, ...apruma Figurão...” Mas, ao chegar numa cruz ele gritava: “Ôooaaa”. Parava o carro de boi e, em frente da cruz, se persignava e rezava uma Ave-Maria e um Pai Nosso pela alma do falecido. A fé é mais importante que a pressa. E assim foi a viagem toda. Uma dúzia de paradas, mais ou menos.
Ao se aproximarem de Patos, se depararam com um cruzeiro ao lado da estrada. Não era sinal de morte, mas era sinal de Deus. Pararam e cumpriram o mesmo ritual. Andaram uns cinqüenta metros, mais ou menos, e mais um cruzeiro. Mais uma parada. E a coisa ia se repetindo, até chegarem numa encruzilhada, no início da Vila Garcia e já dentro da cidade, em que os cruzeiros se dividiram. Era cruzeiro para todo lado. Tio Martinzinho parou o carro de boi, analisou bem a situação, pensou e disse para meu pai:
- Juquinha, vamo fazê u siguinte: pega um ajoujo lá nu carro i amarra a canga da guia aí num moirão da cerca. Aí, ocê pega esse taião di cruz desse lado i vai rezano. Eu vô presse lado daqui. Aquele qui acabá primeiro vem pra cá i ispera o outro. Tá bão?
Meu pai concordou e foi cumprir sua tarefa, mas chegou num ponto que era cruz demais. Fez as contas e concluiu que nem se ficasse o dia inteiro por conta, não cumpriria o combinado. Mesmo diante do risco de uma surra, voltou. Lá chegando, já encontrou o tio Martinzinho, sentado no recabém, já enrolando um pito.
- Deu conta não, né meu fio! Eu tamém não. É cruz dimais da conta. Fiz assim: rezei prelas tudo dali memo i pidi perdão pras almas i pra Deus. Eis vão intendê nóis.
Imagino eu que o sucesso e a expansão dos setores de geração e de distribuição de energia elétrica de Minas talvez devam muito às orações do tio Martinzinho e do meu pai. Afinal, poste e cruzeiro têm a mesma finalidade.
20/05/10
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