terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Meu Pai

A vida gosta de nos pregar algumas peças. E neste final de semana me dei com uma que mexeu profundamente com meus sentimentos. Quase sem nada a fazer, resolvi organizar meu escritório. Casualmente me deparei com um CD de backup, produzido por um técnico de Brasília. Toda vez que ele ia formatar meu computador, ele fazia um backup de segurança. Ao vir para Ariquemes, um aumento de tensão ocasionou a perca total do HD. Então, mesmo não mais me lembrando, restara o dito CD com alguns arquivos.

Ao abri-lo, encontrei a transcrição de algumas anotações feitas por meu pai, organizadas por minha sobrinha. Após o falecimento dele, ela tentou recuperar o acervo que estava espalhado na família. O que ela conseguiu ela me repassou.

Meu pai, o Juca Martins, fora alfabetizado aos 18 anos, de 1927 a 1928. Conforme ele dizia, assentou praça na Força Pública do Estado de São Paulo em 1929. Naquele mesmo ano ocorreu a sua primeira participação em uma Revolução. Em 1933 ele retornou à terra natal e sua primeira iniciativa foi criar uma escola. Daí em diante, de professor foi à inspetoria de ensino, depois Vereador, Vice-Prefeito e Juiz de Paz. Era o autodidata clássico. História, Geografia, Aritmética e Língua Pátria eram aprendidas por ele nos inúmeros livros que ele trazia da cidade. Ele dizia, quase que diariamente: “Quem não souber fazer contas, falar direito e conhecer sua história, nunca vai ser gente”. Fez da fazenda um campus. O barracão do curral e a sala da casa foram sala de aula. Depois ele construiu uma escola, mais tarde transformada em garagem. Quando se embrenhou na política, ele foi criar escolas e, assim, minha mãe conseguiu ter sossego.

Mas o que me chamou a atenção é a transcrição de um discurso dele, como Juiz de Paz, na inauguração da Escola Manoel Machado Braga, localidade de Capoeira Grande, no Município de Lagoa Formosa, que tomo a liberdade de incluir, mantendo a forma original:

“Exmo. Sr. Prefeito João de Deus Vieira; Prezada Professora; caríssimos alunos; meus senhores, minhas senhoras; autoridades aqui presentes.

Nenhuma inauguração tem tanto encanto e nem maior significação que esta. Nenhuma com tanta simpatia que possa dar prestígio às nossas autoridades presentes nesta solenidade, para participar do regozijo público.

Esta inauguração da Escola Manoel Machado Braga, ansiosamente esperada por todos, já é uma realidade; dá ao dia de hoje um caráter de data memorável e que ficará entre as melhores recordações deste povo.

Tem hoje a infância deste perímetro escolar um estabelecimento de ensino à altura de suas necessidades, ministrado por esta dedicada professora, que saberá levar seus alunos até o primeiro degrau da escada de um Ginásio.

Isto é para a alegria e orgulho dos pais. Nosso regozijo bem poucas vezes pode ser igualado ao desse momento. Congratulamos com os grandes benfeitores deste grande melhoramento.

Senhores administradores, em nome dos pais destas crianças, venho mui respeitosamente trazer até às V. Excias os nossos mais sinceros sentimentos de gratidão pelo muito que fizeram por este quarteirão, quase desprezado pelo poder público.

Senhor Prefeito e Senhor Vice-Prefeito, pela experiência que tenho e pela observação que venho fazendo nesta administração, Vossas Excias bateram na tecla de forma acertada, porque todos nós sabemos que as zonas rurais são a chave do progresso do Município e para haver progresso no futuro é necessária a educação no presente.

Prezada Professora, a missão de mestra é nobre e digna, é de todo nosso respeito, mas, para contrabalançar, é ingrata e espinhosa.

Mais, na qualidade de representante da Justiça do nosso Município, coloco à sua ordem para ajudar a resolver todos problemas que surgirem por incompreensão de alguns.

Para terminar, peço à Nossa Senhora da Piedade que derrame suas bênçãos sobre esta escola, sobre a Professora e alunos e sobre todas pessoas que participaram da construção desta casa de ensino.


Obrigado.”


Algumas coisas me chamaram a atenção. A correção gramatical que eu não observara no seu dia-a-dia. A precisão cirúrgica ao se dirigir às autoridades, aos benfeitores, à professora, aos pais e aos alunos. Mais espantoso, ainda, é a consciência da origem do progresso e a forma de consegui-lo, dito de uma forma simples e certeira: “Vossas Excias bateram na tecla de forma acertada, porque todos nós sabemos que as zonas rurais são a chave do progresso do Município e para haver progresso no futuro é necessária a educação no presente”.

A locução “construção desta casa de ensino” me transmite a idéia de oficina do ensino ou oficina do saber, que a meu ver é uma roupagem ambiciosa que realmente teria que ser dada à educação escolar. É um conceito revolucionário que, por exemplo, foi adotado pela Universidade Federal Fluminense na década de 90. Parece-me que a idéia original é de uma Universidade de Portugal. Sagres ou Coimbra, não me lembro.

Penso eu que ao pensamento humano não cabe a conceituação de evolução. Acho que tudo que pensamos atualmente, nossas idéias, nossa visão, tudo isto já perambulou no imaginário de nossos antepassados, independente do seu grau de instrução. Possivelmente faltou a eles apenas oportunidade e condições para encetar a trilha da execução. No caso de meu pai, vejo alguém com uma visão além do ambiente em que viveu, talvez incompreendido, mas que persistiu em tentar fazer, pelo menos, sua parte. Nunca se abdicou do estudar e de incentivar a aquisição de conhecimento. Ele foi maior, muito maior que eu imaginava!


Ariquemes, 11/01/10

Nenhum comentário:

Postar um comentário