Lá onde me criei é igual a todo lugar.
Muita terra boa e também terra ruim.
Tem córrego, tem morro e tem capoeira.
Mata lá também já teve.
Tem pedras, tem brejo.
Tem campestre com goiabinha, araçá e gabiroba.
Gabiroba de árvore e de moita.
Gravatá, araticum e cagaiteira.
Tem chapadão com pés de jatobá e, até, de jequitibá e de pau d’óleo.
João - farinha, aroeira e capitão.
Barriguda, cedro e paineiras.
Ipê branco, amarelo, roxo e rosa.
Tem terra enladeirada e tem perau, onde moram urubu e gavião.
No córrego, pouco peixe e pouco poço, mas lá a gente se divertia.
Piaba, lambari, bagre e sete-léguas de vez em quando a gente pegava.
Pra pegar bagre tinha que sujar a água.
No meio do chapadão, bem no meio, tinha um cruzeiro.
Cruz grande de jacarandá.
Por que estava fincado lá, eu não me lembro.
Era uma ilha solitária rodeada de roça.
Seu vizinho mais próximo era o pau d’óleo.
Era um lugar de rezar e de se persignar.
Posto de observação do caracará e do pinhéu.
Rolinha, fogo-pagô, juriti e pomba-de-bando.
Inhambu, codorna e perdiz.
Bem-ti-vi, joão-de-barro e quero-quero.
Assanhaço, azulão, melro e passupreto.
Sabiá, saracura e seriema.
Canarinho, bicudo, pintassilgo, papa-capim e curió.
Tiziu, tico-tico e anu, do branco e do preto.
Gralha, alma-de-gato, coruja e acauã.
Andorinha, araponga, curiango e beija-flor.
Papagaio, periquito e maritaca.
Pica-pau, tesoura e garrinchinha.
Era um criatório sem cercas e gaiolas.
Chiqueiro, se sem porco, mas com bicho-de-pé.
Curral, barracão e paiol.
Casa da fornalha, para fritar porco e torresmo.
Fazer pamonha, mingau, farinha e sabão de decoada.
Tinha a casa do forno.
Biscoito de polvilho, pão-de-queijo e bolachas.
Broas de milho e de queijo e bolo de fubá.
Brevidade de açucar e de rapadura.
Casinha de queijo e casa de despejo,
Onde ficavam as tuias, o pilão e as tralhas.
Lá já teve até desnatadeira.
Carro de boi guardado ao lado do paiol.
Canzil, chaveia e cambão.
Mesa, fueiro, recabenho, esteira e carniço.
Roda, cravos, eixo de bálsamo, cocão, chumaço.
Cheda, tambueiro e cantadeira.
Ligeira, ajoujo, brocha, tiradeira e laço.
Varas de ferrão. As cangas escoradas na parede.
A de guia, pé-de-guia, meio, coice e cabeçalho.
Casa robusta. Alta, baldrame apoiado em riba de pedra tapiocanga talhada no picão. Paredes grossas e janelas cumpridas, com tramelas. Sem forro, pra ver o dia amanhecer e os relâmpagos da chuva. Assoalho de jacarandá. Alpendre com bancos de madeira, para ficar olhando e fumar pito de fumo capoeirinha. De lá via a cruz onde o Lázaro morrera. Sala, quartos, salão, cozinha e dispensa. Roseiras, ciprestes, trepadeiras, beijos, cravos, palmas, dálias, comigo-ninguém-pode, bico-de-papagaio, bambuzinho, margaridas e orquídeas que davam as boas-vindas. Pé de uva japonesa, de Santa Bárbara para proteger de raios e faíscas.
Na sala uma mesa com cadeiras pesadas, cantoneira com cabides, espelho e guarda-louça, onde ficavam capoteiras, jogos de porcelanas, de louças e de cristais. Nas paredes retratos dos avôs, pais e irmãos.
No salão o relógio de parede, cantoneira com filtro d’água, marca São José. Tinha o rádio de mesa pra ouvir música caipira, Jerônimo - o Herói do Sertão, a Voz do Brasil e as Folias de Reis. Cadeiras encostadas nas paredes, um banco e o retrato de Getúlio. Corações de Jesus e Maria, quadro de Santa Terezinha do Menino Jesus e uma folhinha Mariana.. Uma pia, um toalheiro com espelho.
Os quartos eram simples, dois pra sala e um pro salão. Este era o dos pais. Cama de casal, com colchão de mola e uma cama de solteiro, refúgio de um deles quando a discussão aumentava de tom. Guarda-roupa grande, baú e uma penteadeira. Na parede um cabideiro grande. Em cada quarto da sala, duas camas encostadas nas paredes, com colchão de capim, guarda-roupa e cabideiro pequeno.
A cozinha era grande. Mesa com dois bancos de madeira. Fogão à lenha com forno e com serpentina para aquecer a água do chuveiro. Por cima, lingüiça no pau. Tinha ainda a prateleira para colocar os “trem” e tinha o guarda-comida. Ali era o almoxarifado das marmeladas, goiabadas, doces de laranja, doces de mamão, de pêssego e de figo, doces de leite e pé-de-moleque. Uns duros, outros moles. Uns ralados, outras em "taia". E o doce-de-queijo?! Em calda ou em ameixa. Tinha uma pia de cimento. Banquinhos para “esquentar fogo”, atiçado com sabugos. Dispensa para guardar o estoque mínimo de feijão, arroz, farinha, latas de carne e de banha. Gamelas, peneiras de bambu, formas de assar, lata de querosene Jacaré. A cozinha também tinha seu quarto. Se tivesse empregada, lá era o seu. Era também o da máquina Singer e da costura, da roupa suja e lavada, da caixa de roupas.
O quintal era de dar inveja. Eucalipto, café e bálsamo.
Bananeiral bem cuidado: maçã, prata, ourinho, roxa e marmelo.
Laranja lima, serra d’água, seca, comum e da baía.
Laranja-da-terra, rosa e sidra, estas pra fazer doce.
Lima da pérsia e de bico e pitanga.
Manga espada, rosa, bourbon, coca e coquinha.
Lá, manga comum não tinha, só de qualidade.
Jambo, pêssego, romã e abacate.
Jabuticaba, figo e marmelo.
Goiaba, mamão, mexerica e tangerina.
Pé de amora, de tão grande, se amarrava a gangorra.
A horta era farta.
Quiabo, jiló, mandioca, pepino e abóbora.
Inhame, cará de chão e de corda.
Batata-doce e inglesa.
Couve, agrião, almeirão e chicória.
Cebolinha, salsa e a lata de marcela.
Com marcela não havia estômago doente.
Lá tinham os agregados.
Mais antigamente a Cota e Tio Pedro.
Depois o Tino Pinheiro, Paraíba e Zé Teixeira
A Ludica do Tino se banhava a cada 20 dias.
O Paraíba fazia filhos e o Teixeira tocava viola.
Com ele a Maria do Paraíba se perdeu.
Tinha a colheita do arroz, do feijão e do milho.
Cobra no arrozal. Dor nas costas na colheita do feijão.
Na debulha do milho, um ermo de gente.
Muita cachaça, tutu, arroz e macarrão.
Ajuntar toda colheita no carro de boi.
A vida era simples. Levantar cedo e tirar leite.
Desjejum com café preto e omelete de jiló e cebola.
Biscoitos, queijo, requeijão ou bolos.
Às vezes, a mãe fritava uma mentira.
Comida simples e rápida: polvilho, água e sal.
Alegria da meninada!
Depois, arrear o baio e ir pra escola.
Capanga a tiracolo com cadernos e livros rotos.
Maria Preguinho foi a primeira professora.
Neguinha brava e boa de palmatória.
De certa feita, deu na cara do Wilson Fonseca.
Voltar pra casa e trabalhar. Capinar quintal e roça.
Atrelar cavalos e carpideirar.
Limpar pastos e fazer cerca.
Cortar e rachar lenha. Dar milho às galinhas.
Recolher ovos. Virar os queijos.
Limpar chiqueiro, tratar dos porcos.
Separar sabugos pra fornalha.
Ainda tínhamos tempo para caçar.
Estilingue de forquilha de jabuticaba.
E câmara-de-ar de bicicleta. Era o melhor.
Bodoque com barbante encerado.
Este era criminoso. Não havia unha que bastasse.
Espingarda Laporte com espoleta, de encher pela boca,
pra pegar juriti nas grimpas e inhambu e codorna voando.
Arapuca e visgo de leiteira e de gameleira.
Cavalo de pau e carrinho de lobeira.
Boiada de sabugo, tudo "pareiada",
branco com branco e vermelho com vermelho.
Se chovesse, corria pra casa.
Muito corisco e muito relâmpago.
Depois da chuva, correr para achar olho-d’água.
À tardinha, na casa dos agregados.
Brincar, correr e escutar moda de viola.
Contar e escutar causos.
Se de assombração, a volta pra casa seria mais cuidadosa.
Mesmo que lua iluminasse o caminho.
Chegar em casa. Tomar banho ou lavar os pés.
Ouvir rádio, deitar e se cobrir com cobertas teadas.
E levantar ao som do galo e dos baldes no curral.
Aos domingos, era o nosso regalo.
Era dia de banquete.
Igual em todos domingos, mas era banquete.
Arroz com tutu. Frango no açafrão.
Molho de jiló e de quiabo.
Macarronada com muito queijo e ovo.
Tudo isto regado com "môio-tolo".
"Môio-tolo?" - Caldo de feijão, caldo de frango,
muita pimenta bode, pimenta do reino, salsa e cebolinha.
Pra quem não gostava de frango, carne de lata com mandioca.
Éramos fartos. De liberdade e de sonhos.
De despreocupações e de paciência.
De alegria e de esperanças.
Tínhamos pai, mãe e irmãos... todos.
Tínhamos muita idade ainda por percorrer.
Tínhamos todo tempo do mundo.
Lá onde me criei, eu era meu.
Martins
Ariquemes, 31/12/2009