Minh’alma e eu já tínhamos um armistício assegurado. Até mesmo meu alter ego nele fora incluído. Seria inadequadamente descortês o meu todo eu não estar compartilhado. Nesse pacto foi estabelecida uma nova ordem sentimental. Ainda não era um tratado de paz, propriamente dito, mas o consideraríamos como tal. O coração sofrera uma ruptura drástica. Praticamente, fora castrado. Doravante, a quietude imperaria. Meus sonhos se resumiriam na pouquidão de alguns pequenos anseios. Na estreiteza de ínfimas fantasias. Nalguns retalhos de ambição e fragmentos de esperança. Num minguado e contido enlevo eventual. Em limitados e mirrados momentos da brevidade de uma paixão. O ordenamento poderia não ser perfeito, mas funcionava. A limitação encurta, mas simplifica. Se mutila, também alivia. Ela definha, mas minimiza. Muitas vezes abrevia e estreita. É estoicismo? Talvez, mas Bandeira também me ajudava: “O que não tenho e desejo, é que melhor me enriquece”.
Um estado de sofreguidão leva à indiferença. Os sentimentos são fleumatizados. O desinteresse castra as fantasias. A concupiscência é despretensiosa. O fascínio de uma sedução torna-se fútil. Todavia, se coração enjaulado, permite-se mais tempo ao intelecto. Perdas terão que ser compensadas. A gênese do interior do ser humano parece seguir uma rigidez contábil. A regra das partilhas dobradas. Cada débito corresponde a um crédito de igual valor. Sua soma é sempre igual a zero. Perde-se aqui, ganha-se o mesmo ali. Então, essa contabilidade da alma humana permite o equilíbrio necessário. O sistema passa a produzir de forma harmônica, em que pese, às vezes, não estar de acordo com o coração.
Esse arranjo, quase sempre, simples e disciplinado, se situa no liame entre o admitido e o desejado. Logo, é tênue. Frágil e débil. Um simples “oi!”. Um sorriso maroto. A meiguice de apenas um “sim!”. Um despretensioso olhar, terno e sôfrego. Ou a fragrância de um perfume. Toda esta estabilidade pode ruir fragorosamente. O conflito interior torna-se sem medidas. O caos passa a imperar. Razão e Sentimentos travam uma batalha insana. Sem nenhuma concepção prévia, seus exércitos partem para o embate. Desorganizadamente, os carros de combate são lançados. As patas dos ginetes produzem um estrondo ensurdecedor. O zunido sibilante das flechas causa calafrios. O choque dos escudos e espadas ensurdece. Elmos e membros são ceifados pela lâmina. Cabeças rolam, a carne é dilacerada. Lanças traspassam. O sangue jorra. Rugidos de dor se espalham. As portas do inferno foram abertas. Após dias, semanas ou meses, Razão e Sentimentos quedam-se no centro do campo de batalha. Calados, não encontram justificativas para tanta dor e sofrimento. A alma esfacelada e em frangalhos. Fora martirizada e supliciada ao extremo. A ardência no coração é quase insuportável. Até a vontade do não mais viver parece bater à porta.
Por fim, se abraçam. Seguem, de braços dados, em direção ao horizonte. Espadas, lanças, arcos e flechas vão sendo despojados pelo caminho. Despem-se dos escudos, dos elmos e armaduras. Uma batalha sem vencedor. Sem espólios. Restaram cansaço e exaustão. Sentam-se e, olho no olho, confabulam. O coração lhes ouve e atende. Tem-se o parto de um novo começo. Um novo eu cheirando criança nova.
Martins
22/02/11