sábado, 16 de janeiro de 2010

O Artista

No fundo, bem no fundo, do eu de cada um, deve existir um desejo escondido de querer ser um artista. A arte, entendo eu, seria um dom irrecusável. A arte talvez seja o viés mais humano da interioridade humana. Einstein, Michelangelo e Da Vinci, por exemplo, provaram que, até mesmo, as ciências exatas são pura arte. Eles foram verdadeiros artistas da ciência. Neste mesmo diapasão, inúmeros conseguiram lambuzar com a arte atividades não correlacionadas e consideradas como tal: Pelé, Garrincha e Maradona; Ayrton Senna; os Globetrotters; Ivo Pitanguy, entre tantos.

Quantos não guardam desejos íntimos de serem pintores, escritores, escultores, músicos, poetas, cantores, atores! Por motivos, os mais diversos, a grande maioria não consegue desenvolver esses talentos. As adversidades imperam. Outros tantos, por falta da graça do dom, tentam plantá-los e desenvolvê-los, mas são limitados pela insuficiência natural. Alguns, entre estes, até mesmo se frustram, talvez imaginando que a gratuidade do talento fosse generalizada.

A grande maioria não é reconhecida. Parte, apenas no post mortem. Mas isto nem sempre é um grande problema, pois o artista detém uma capacidade de desprendimento incompreensível. Parece-me que ele vive mais para satisfazer a si próprio, que para mostrar o seu trabalho. É, via de regra, um abnegado. Contudo uma coisa é certa, ele tem necessidade de mostrar-se ao mundo. De submeter-se às críticas. De ser avaliado. É a forma de ele buscar sempre o máximo. Ele persegue a perfeição. Talvez uma necessidade de auto-afirmação. O reconhecimento é seu combustível.

O artista é uma casta diferenciada. É vaidoso. É um ser absolutamente livre. No pensar e no agir. É autoconfiante. Muito dono de suas verdades. É contestador. É corajoso. Cria suas próprias regras. Orgulhoso, não se humilha. Paciente, determinado e perseverante. Quase sempre, alheio ao mundo que lhe rodeia. Um sonhador e um transformador. Parece que gosta de morrer prematuramente, pois assim torna-se eterno, não permitindo, então, que a velhice lhe corroa o reconhecimento, a admiração e a adoração.

Martins
Ariquemes, 24/10/06

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Meu Pai

A vida gosta de nos pregar algumas peças. E neste final de semana me dei com uma que mexeu profundamente com meus sentimentos. Quase sem nada a fazer, resolvi organizar meu escritório. Casualmente me deparei com um CD de backup, produzido por um técnico de Brasília. Toda vez que ele ia formatar meu computador, ele fazia um backup de segurança. Ao vir para Ariquemes, um aumento de tensão ocasionou a perca total do HD. Então, mesmo não mais me lembrando, restara o dito CD com alguns arquivos.

Ao abri-lo, encontrei a transcrição de algumas anotações feitas por meu pai, organizadas por minha sobrinha. Após o falecimento dele, ela tentou recuperar o acervo que estava espalhado na família. O que ela conseguiu ela me repassou.

Meu pai, o Juca Martins, fora alfabetizado aos 18 anos, de 1927 a 1928. Conforme ele dizia, assentou praça na Força Pública do Estado de São Paulo em 1929. Naquele mesmo ano ocorreu a sua primeira participação em uma Revolução. Em 1933 ele retornou à terra natal e sua primeira iniciativa foi criar uma escola. Daí em diante, de professor foi à inspetoria de ensino, depois Vereador, Vice-Prefeito e Juiz de Paz. Era o autodidata clássico. História, Geografia, Aritmética e Língua Pátria eram aprendidas por ele nos inúmeros livros que ele trazia da cidade. Ele dizia, quase que diariamente: “Quem não souber fazer contas, falar direito e conhecer sua história, nunca vai ser gente”. Fez da fazenda um campus. O barracão do curral e a sala da casa foram sala de aula. Depois ele construiu uma escola, mais tarde transformada em garagem. Quando se embrenhou na política, ele foi criar escolas e, assim, minha mãe conseguiu ter sossego.

Mas o que me chamou a atenção é a transcrição de um discurso dele, como Juiz de Paz, na inauguração da Escola Manoel Machado Braga, localidade de Capoeira Grande, no Município de Lagoa Formosa, que tomo a liberdade de incluir, mantendo a forma original:

“Exmo. Sr. Prefeito João de Deus Vieira; Prezada Professora; caríssimos alunos; meus senhores, minhas senhoras; autoridades aqui presentes.

Nenhuma inauguração tem tanto encanto e nem maior significação que esta. Nenhuma com tanta simpatia que possa dar prestígio às nossas autoridades presentes nesta solenidade, para participar do regozijo público.

Esta inauguração da Escola Manoel Machado Braga, ansiosamente esperada por todos, já é uma realidade; dá ao dia de hoje um caráter de data memorável e que ficará entre as melhores recordações deste povo.

Tem hoje a infância deste perímetro escolar um estabelecimento de ensino à altura de suas necessidades, ministrado por esta dedicada professora, que saberá levar seus alunos até o primeiro degrau da escada de um Ginásio.

Isto é para a alegria e orgulho dos pais. Nosso regozijo bem poucas vezes pode ser igualado ao desse momento. Congratulamos com os grandes benfeitores deste grande melhoramento.

Senhores administradores, em nome dos pais destas crianças, venho mui respeitosamente trazer até às V. Excias os nossos mais sinceros sentimentos de gratidão pelo muito que fizeram por este quarteirão, quase desprezado pelo poder público.

Senhor Prefeito e Senhor Vice-Prefeito, pela experiência que tenho e pela observação que venho fazendo nesta administração, Vossas Excias bateram na tecla de forma acertada, porque todos nós sabemos que as zonas rurais são a chave do progresso do Município e para haver progresso no futuro é necessária a educação no presente.

Prezada Professora, a missão de mestra é nobre e digna, é de todo nosso respeito, mas, para contrabalançar, é ingrata e espinhosa.

Mais, na qualidade de representante da Justiça do nosso Município, coloco à sua ordem para ajudar a resolver todos problemas que surgirem por incompreensão de alguns.

Para terminar, peço à Nossa Senhora da Piedade que derrame suas bênçãos sobre esta escola, sobre a Professora e alunos e sobre todas pessoas que participaram da construção desta casa de ensino.


Obrigado.”


Algumas coisas me chamaram a atenção. A correção gramatical que eu não observara no seu dia-a-dia. A precisão cirúrgica ao se dirigir às autoridades, aos benfeitores, à professora, aos pais e aos alunos. Mais espantoso, ainda, é a consciência da origem do progresso e a forma de consegui-lo, dito de uma forma simples e certeira: “Vossas Excias bateram na tecla de forma acertada, porque todos nós sabemos que as zonas rurais são a chave do progresso do Município e para haver progresso no futuro é necessária a educação no presente”.

A locução “construção desta casa de ensino” me transmite a idéia de oficina do ensino ou oficina do saber, que a meu ver é uma roupagem ambiciosa que realmente teria que ser dada à educação escolar. É um conceito revolucionário que, por exemplo, foi adotado pela Universidade Federal Fluminense na década de 90. Parece-me que a idéia original é de uma Universidade de Portugal. Sagres ou Coimbra, não me lembro.

Penso eu que ao pensamento humano não cabe a conceituação de evolução. Acho que tudo que pensamos atualmente, nossas idéias, nossa visão, tudo isto já perambulou no imaginário de nossos antepassados, independente do seu grau de instrução. Possivelmente faltou a eles apenas oportunidade e condições para encetar a trilha da execução. No caso de meu pai, vejo alguém com uma visão além do ambiente em que viveu, talvez incompreendido, mas que persistiu em tentar fazer, pelo menos, sua parte. Nunca se abdicou do estudar e de incentivar a aquisição de conhecimento. Ele foi maior, muito maior que eu imaginava!


Ariquemes, 11/01/10

domingo, 10 de janeiro de 2010

Oscar Quiaque


O Oscar Moreira, mais conhecido como Oscar Quiaque, era o homem mais rico da minha região. Não me recordo o porquê do Quiaque. Nem sei se era apelido próprio ou se por herança. Pra dizer a verdade, nem mesmo tenho certeza da grafia. Poderia ser Kiac ou Quiac. Por falta de elementos comprobatórios, vou adotar o Quiaque. Era proprietário de uma fazenda grande, que tomava toda uma serra, chamada de Serra do Oscar. Lá nascia o córrego Canjerana, que deu o nome a toda área que ele banhava. A Serra do Oscar era nosso indicativo meteorológico. Se embranquecesse da chuva, podia se organizar para receber a dita em poucos minutos. Lá sempre chovia primeiro.

Oscar era um velho bem apessoado. Muito alto, calças folgadas, quase sempre de algodão. Camisas também de algodão e de mangas compridas. Chapéu grande, de feltro e de coco alto. Era uma figura imponente. Falava pouco, não visitava os vizinhos. Ele, Dona Izabel e Jucão, seu filho mais velho, viviam sozinhos num casarão construído no início do século. Não tinha automóvel e quando ia ao arraial, que era muito raro, só a cavalo. Comentava-se na região que era extremamente sovina. Levava bananas na algibeira do arreio, para não precisar gastar na viagem. Que trazia as cascas de volta para dar aos porcos. Se recebesse uma visita, fazia questão de levá-la pro alpendre. Era muito educado. Nunca deixava uma visita ir embora sem tomar um café.

“Zabela, faiz um moca aí pra nós. Pópô açúcar e café”. A visita ficava satisfeita, afinal iria tomar um café forte e com bastante açúcar. Café com substância. Quando a Izabel chegava com o café, era uma surpresa. O café era ralo e quase sem açúcar. O “pópô” não era “pode pôr”, era para “poupar” café e açúcar.

Seu vizinho, o Juca do Amâncio, conseguiu ajuntar dinheiro e coragem e comprou uma Pick-up Jeep, ainda era da Willys Overland. Sonho de consumo dos roceiros daquela época. Mas a única estrada que chegava à casa do Juca era uma antiga, daquelas de carro de boi. Muito tortuosa, íngreme, cheia de erosão e de cavas. Por ela nem a Pick-up passava. Então, o Juca se socorreu com o Oscar. Depois de uma boa conversa, o Oscar permitiu ao Juca que abrisse uma estrada, desde que fosse a enxadão e em troca de alguns favores com o serviço da Pick-up. Ou seja, montaram uma parceria que atendia muito bem a ambos.

Num dia bastante chuvoso, após passar bastante trabalho com a Pick-up na subida da serra, o Juca encontrou com o Oscar à espera na beira da estrada. Ele trazia um cacho de banana.

- dia, Juca!
- dia, Sô Oscar!
- tá ino pá cidade?
- tô.
- bão! Me faiz um favor?
- pois não!
- ocê leva esse cacho de banana e vende ele pra mim?
- tá!
- aí, com o dinheiro, cê manda consertar esse munho, traiz um saco de sal, dois quilo de cebola, cinco quilo de açúcar e um par de butina pro Jucão. Com o troco, traiz uma brusa pra Zabela, pois o frio tá começano com essa chuvarada.

- e o tamanho da butina do Jucão?
- uai, sô, dois quatro de pareia.
- pois não, sô Oscar!

E lá foi o Juca do Amâncio remoendo o acordo com o Oscar Quiaque. Afinal, a venda das bananas sequer dava para pagar o conserto do moinho e muito menos a botina 44 do Jucão.


Ariquemes, 10/01/10

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Lá onde me criei...

Lá onde me criei é igual a todo lugar.
Muita terra boa e também terra ruim.
Tem córrego, tem morro e tem capoeira.
Mata lá também já teve.
Tem pedras, tem brejo.
Tem campestre com goiabinha, araçá e gabiroba.
Gabiroba de árvore e de moita.
Gravatá, araticum e cagaiteira.
Tem chapadão com pés de jatobá e, até, de jequitibá e de pau d’óleo.
João - farinha, aroeira e capitão.
Barriguda, cedro e paineiras.
Ipê branco, amarelo, roxo e rosa.
Tem terra enladeirada e tem perau, onde moram urubu e gavião.
No córrego, pouco peixe e pouco poço, mas lá a gente se divertia.
Piaba, lambari, bagre e sete-léguas de vez em quando a gente pegava.
Pra pegar bagre tinha que sujar a água.

No meio do chapadão, bem no meio, tinha um cruzeiro.
Cruz grande de jacarandá.
Por que estava fincado lá, eu não me lembro.
Era uma ilha solitária rodeada de roça.
Seu vizinho mais próximo era o pau d’óleo.
Era um lugar de rezar e de se persignar.
Posto de observação do caracará e do pinhéu.

Rolinha, fogo-pagô, juriti e pomba-de-bando.
Inhambu, codorna e perdiz.
Bem-ti-vi, joão-de-barro e quero-quero.
Assanhaço, azulão, melro e passupreto.
Sabiá, saracura e seriema.
Canarinho, bicudo, pintassilgo, papa-capim e curió.
Tiziu, tico-tico e anu, do branco e do preto.
Gralha, alma-de-gato, coruja e acauã.
Andorinha, araponga, curiango e beija-flor.
Papagaio, periquito e maritaca.
Pica-pau, tesoura e garrinchinha.
Era um criatório sem cercas e gaiolas.

Chiqueiro, se sem porco, mas com bicho-de-pé.
Curral, barracão e paiol.
Casa da fornalha, para fritar porco e torresmo.
Fazer pamonha, mingau, farinha e sabão de decoada.
Tinha a casa do forno.
Biscoito de polvilho, pão-de-queijo e bolachas.
Broas de milho e de queijo e bolo de fubá.
Brevidade de açucar e de rapadura.
Casinha de queijo e casa de despejo,
Onde ficavam as tuias, o pilão e as tralhas.
Lá já teve até desnatadeira.

Carro de boi guardado ao lado do paiol.
Canzil, chaveia e cambão.
Mesa, fueiro, recabenho, esteira e carniço.
Roda, cravos, eixo de bálsamo, cocão, chumaço.
Cheda, tambueiro e cantadeira.
Ligeira, ajoujo, brocha, tiradeira e laço.
Varas de ferrão. As cangas escoradas na parede.
A de guia, pé-de-guia, meio, coice e cabeçalho.

Casa robusta. Alta, baldrame apoiado em riba de pedra tapiocanga talhada no picão. Paredes grossas e janelas cumpridas, com tramelas. Sem forro, pra ver o dia amanhecer e os relâmpagos da chuva. Assoalho de jacarandá. Alpendre com bancos de madeira, para ficar olhando e fumar pito de fumo capoeirinha. De lá via a cruz onde o Lázaro morrera. Sala, quartos, salão, cozinha e dispensa. Roseiras, ciprestes, trepadeiras, beijos, cravos, palmas, dálias, comigo-ninguém-pode, bico-de-papagaio, bambuzinho, margaridas e orquídeas que davam as boas-vindas. Pé de uva japonesa, de Santa Bárbara para proteger de raios e faíscas.

Na sala uma mesa com cadeiras pesadas, cantoneira com cabides, espelho e guarda-louça, onde ficavam capoteiras, jogos de porcelanas, de louças e de cristais. Nas paredes retratos dos avôs, pais e irmãos.

No salão o relógio de parede, cantoneira com filtro d’água, marca São José. Tinha o rádio de mesa pra ouvir música caipira, Jerônimo - o Herói do Sertão, a Voz do Brasil e as Folias de Reis. Cadeiras encostadas nas paredes, um banco e o retrato de Getúlio. Corações de Jesus e Maria, quadro de Santa Terezinha do Menino Jesus e uma folhinha Mariana.. Uma pia, um toalheiro com espelho.

Os quartos eram simples, dois pra sala e um pro salão. Este era o dos pais. Cama de casal, com colchão de mola e uma cama de solteiro, refúgio de um deles quando a discussão aumentava de tom. Guarda-roupa grande, baú e uma penteadeira. Na parede um cabideiro grande. Em cada quarto da sala, duas camas encostadas nas paredes, com colchão de capim, guarda-roupa e cabideiro pequeno.

A cozinha era grande. Mesa com dois bancos de madeira. Fogão à lenha com forno e com serpentina para aquecer a água do chuveiro. Por cima, lingüiça no pau. Tinha ainda a prateleira para colocar os “trem” e tinha o guarda-comida. Ali era o almoxarifado das marmeladas, goiabadas, doces de laranja, doces de mamão, de pêssego e de figo, doces de leite e pé-de-moleque. Uns duros, outros moles. Uns ralados, outras em "taia". E o doce-de-queijo?! Em calda ou em ameixa. Tinha uma pia de cimento. Banquinhos para “esquentar fogo”, atiçado com sabugos. Dispensa para guardar o estoque mínimo de feijão, arroz, farinha, latas de carne e de banha. Gamelas, peneiras de bambu, formas de assar, lata de querosene Jacaré. A cozinha também tinha seu quarto. Se tivesse empregada, lá era o seu. Era também o da máquina Singer e da costura, da roupa suja e lavada, da caixa de roupas.

O quintal era de dar inveja. Eucalipto, café e bálsamo.
Bananeiral bem cuidado: maçã, prata, ourinho, roxa e marmelo.
Laranja lima, serra d’água, seca, comum e da baía.
Laranja-da-terra, rosa e sidra, estas pra fazer doce.
Lima da pérsia e de bico e pitanga.
Manga espada, rosa, bourbon, coca e coquinha.
Lá, manga comum não tinha, só de qualidade.
Jambo, pêssego, romã e abacate.
Jabuticaba, figo e marmelo.
Goiaba, mamão, mexerica e tangerina.
Pé de amora, de tão grande, se amarrava a gangorra.

A horta era farta.
Quiabo, jiló, mandioca, pepino e abóbora.
Inhame, cará de chão e de corda.
Batata-doce e inglesa.
Couve, agrião, almeirão e chicória.
Cebolinha, salsa e a lata de marcela.
Com marcela não havia estômago doente.

Lá tinham os agregados.
Mais antigamente a Cota e Tio Pedro.
Depois o Tino Pinheiro, Paraíba e Zé Teixeira
A Ludica do Tino se banhava a cada 20 dias.
O Paraíba fazia filhos e o Teixeira tocava viola.
Com ele a Maria do Paraíba se perdeu.

Tinha a colheita do arroz, do feijão e do milho.
Cobra no arrozal. Dor nas costas na colheita do feijão.
Na debulha do milho, um ermo de gente.
Muita cachaça, tutu, arroz e macarrão.
Ajuntar toda colheita no carro de boi.

A vida era simples. Levantar cedo e tirar leite.
Desjejum com café preto e omelete de jiló e cebola.
Biscoitos, queijo, requeijão ou bolos.
Às vezes, a mãe fritava uma mentira.
Comida simples e rápida: polvilho, água e sal.
Alegria da meninada!

Depois, arrear o baio e ir pra escola.
Capanga a tiracolo com cadernos e livros rotos.
Maria Preguinho foi a primeira professora.
Neguinha brava e boa de palmatória.
De certa feita, deu na cara do Wilson Fonseca.
Voltar pra casa e trabalhar. Capinar quintal e roça.
Atrelar cavalos e carpideirar.
Limpar pastos e fazer cerca.
Cortar e rachar lenha. Dar milho às galinhas.
Recolher ovos. Virar os queijos.
Limpar chiqueiro, tratar dos porcos.
Separar sabugos pra fornalha.

Ainda tínhamos tempo para caçar.
Estilingue de forquilha de jabuticaba.
E câmara-de-ar de bicicleta. Era o melhor.
Bodoque com barbante encerado.
Este era criminoso. Não havia unha que bastasse.
Espingarda Laporte com espoleta, de encher pela boca,
pra pegar juriti nas grimpas e inhambu e codorna voando.
Arapuca e visgo de leiteira e de gameleira.
Cavalo de pau e carrinho de lobeira.
Boiada de sabugo, tudo "pareiada",
branco com branco e vermelho com vermelho.
Se chovesse, corria pra casa.
Muito corisco e muito relâmpago.
Depois da chuva, correr para achar olho-d’água.

À tardinha, na casa dos agregados.
Brincar, correr e escutar moda de viola.
Contar e escutar causos.
Se de assombração, a volta pra casa seria mais cuidadosa.
Mesmo que lua iluminasse o caminho.
Chegar em casa. Tomar banho ou lavar os pés.
Ouvir rádio, deitar e se cobrir com cobertas teadas.
E levantar ao som do galo e dos baldes no curral.

Aos domingos, era o nosso regalo.
Era dia de banquete.
Igual em todos domingos, mas era banquete.
Arroz com tutu. Frango no açafrão.
Molho de jiló e de quiabo.
Macarronada com muito queijo e ovo.
Tudo isto regado com "môio-tolo".
"Môio-tolo?" - Caldo de feijão, caldo de frango,
muita pimenta bode, pimenta do reino, salsa e cebolinha.
Pra quem não gostava de frango, carne de lata com mandioca.

Éramos fartos. De liberdade e de sonhos.
De despreocupações e de paciência.
De alegria e de esperanças.
Tínhamos pai, mãe e irmãos... todos.
Tínhamos muita idade ainda por percorrer.
Tínhamos todo tempo do mundo.
Lá onde me criei, eu era meu.


Martins
Ariquemes, 31/12/2009